Fiel a si mesmo, Humberto Campana já cruzou tantas fronteiras mentais, espirituais, criativas e geográficas ao lado do irmão, Fernando, morto em 2022, que decidiu voltar para onde tudo começou, a cidadezinha de Brotas, no interior paulista, numa dupla cruzada contra rachaduras do passado e em defesa do meio ambiente. Afinal, no lugar em que a dupla nasceu, e, na maior parte do tempo, ele se sentia um peixe fora d’água, viveram uma infância e adolescência únicas, marcadas pela deliciosa proximidade com a natureza, banhos de rio, sessões de clássicos no Cine São José, viagens intergalácticas imaginárias e invenções mil com pedaços de bambu, mandacarus, pedras, barro, latas e tudo o mais que estivesse ao alcance das mãos no quintal de casa e arredores ‒ ressignificando tudo, de materiais a objetos.
Esse início lúdico injetou boas doses de irreverência e lirismo ao espírito dos irmãos, dois dos mais celebrados designers do mundo. “Sou quem eu sou por tudo aquilo”, Humberto não cansa de repetir. Eles fizeram o mundo chorar de emoção graças ao espírito libertário, a um só tempo rural e urbano, local e universal, popular e sofisticado, vindo de lugares imprevisíveis e ditado pela curiosidade inesgotável, por exercícios mentais incomuns, além de uma genialidade artística e humana tão singular. Tudo isso em meio a muita brasilidade, pois desde sempre a dupla esteve atenta à riqueza da cultura e tradições do nosso país.
Parque Campana: pertencimento
A pandemia foi o turning point. “Eu precisava provar que estava vivo. Tomei consciência que tinha de fazer algo”, lembra Humberto Campana. As viagens a Brotas se tornaram quase uma obsessão. “Eu queria me reconciliar com o lugar onde nasci, onde tinha pertencimento, mas onde sempre me senti isolado.” Lá, intuiu, junto de Fernando, que poderia transformar o sítio herdado da família, de 78 hectares, 26 deles ainda cobertos por vegetação nativa, em um projeto cheio de propósito, capaz de exercer uma influência duradoura sobre o clima e as próximas gerações. “Já dei aula, fiz workshops em tantos lugares mundo afora, por que não na nossa comunidade?”, se perguntou na época.
O sonho virou realidade! As comemorações dos 40 anos do Estúdio Campana, em 2024, incluíram a inauguração do Parque Campana, que alia arte, ciência e educação. Os dois irmãos poderiam muito bem ter arrendado a terra para a plantação de soja, como é comum na região, mas as memórias afetivas, o desejo de preservação da natureza e a vontade de melhorar o mundo falaram mais alto e eles uniram forças em torno do plano ambicioso, que em alguns anos deve estar totalmente implementado. “Esse parque é um lugar sagrado, de silêncio, de cura da alma”, reflete o designer, interessado no sentido espiritual das coisas.
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Parque Campana: referências
Grandes instalações imersivas e obras de arte a céu aberto materializam o pilar cultural no novo Parque Campana, em Brotas. O sustentável, que abraça a regeneração da fauna e flora locais, formada por espécies de Cerrado e Mata Atlântica, irá converter, a longo prazo, áreas de pastagem em florestas naturais. Já o educacional alia os dois anteriores e prevê a difusão de conhecimento. Até agora, já foram plantadas 20 mil mudas e criados 12 pavilhões verdes, inspirados em antigas cidades da Etrúria, região onde atualmente fica a Toscana, lugar de origem da família Campana. “Eu queria fazer uma ponte entre o Brasil e a Itália”, diz Humberto.
São espaços para aulas de botânica, ioga, palestras, performances de música, dança, arte e contemplação, criados a partir de materiais locais. “A ansiedade é grande, e as ideias continuam”, fala Humberto sobre o parque, um organismo vivo, cuja arquitetura é definida pelas plantas. “Quando ando por lá, a minha imaginação se perde, e enxergo mil possibilidades. Por enquanto, quero ver as árvores crescerem.”
Oito dos pavilhões já estão prontos, todos receberam nomes que homenageiam pessoas da família do designer: o de concreto, piaçava, areia branquinha e clima transcendental é o Alice. Toda vazada, a Catedral Alberto, de toras de eucalipto, joga com efeitos de luz e sombra a fim de promover um sentido espiritual. “Meu pai fez um protótipo de madeira da Catedral de Brasília para uma procissão. Depois a peça virou brinquedo para mim e o Fernando”, lembra Humberto. “E essa é a nossa interpretação da famosa catedral de Niemeyer.”
O muro de mandacarus que dividia o lote da família do terreno vizinho, na infância do designer, o inspirou a criar o Célia – quando crescerem, as plantas demarcarão um anfiteatro para concertos. Com desenho circular, a estrutura de tijolos vazados e interior pontuado por uma instalação de pedras virou o Pavilhão Fernando. Já a Catedral Laura, delineada por um vasto bambuzal, aprofunda a experiência de bem-estar em seu interior, composto de várias chaises-longues, distribuídas em torno de um espelho d’água com fonte. O Pavilhão José Alberto, com espadas-de-são-jorge, segue o mesmo mood. Por fim, outras duas instalações de land art, uma com agave, batizada de JL, e outra de areia, a Denise, formam o magnífico conjunto científico-cultural ao ar livre.
Matéria publicada na edição 17 da Revista UNQUIET.