Mais de um século de história

No mês que celebra o orgulho LGBT+, um giro pela trajetória de lutas, conquistas e desafios do movimento passa por grandes cidades, relembra os acontecimentos históricos e mapeia os melhores lugares gay-friendly para visitar

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O mundo já passou por muita coisa… Guerras, revoluções, epidemias e por aí vai. E uma das maiores transformações sociais ocorridas na história recente foi o movimento pela igualdade de direitos para as pessoas LGBT+. No Brasil e no mundo, essa luta teve (e ainda tem) muitos altos e baixos, mas é uma das maiores batalhas pela justiça social de todos os tempos.

Antes de seguirmos, vale um recado. Você já deve ter visto muitas versões da sigla usada para mencionar o grupo de pessoas gays, lésbicas, bissexuais, trans, travestis, não-binárias, queer, intersexo, assexuais, pansexuais, que vão de GLS a LGBTQIANP+, e outras que continuam surgindo quase todo dia. Vamos usar aqui a sigla LGBT+, alinhada ao entendimento da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, que propõe que, pelo menos por enquanto, o + agregado ao histórico LGBT contemple todas as possibilidades de identidade de gênero e orientação sexual. O objetivo é diminuir a necessidade de troca constante de sigla, que na prática tem se constituído em uma dificuldade editorial, que inclusive dificulta a apreensão do significado da sigla para o grande público. 

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Berlim foi o primeiro lugar a criar consciência sobre a discriminação e preconceito sofridos por pessoas LGBT+
Foto: Getty Images

Resistência e luta  

Pois bem, a história do movimento LGBT+ como conhecemos hoje tem suas raízes no final do século XIX e início do século XX, quando começou a surgir uma consciência crescente de que as pessoas LGBT+ eram vítimas de discriminação e preconceito. Berlim foi o primeiro lugar onde esse pensamento começa a se estruturar de forma consistente, graças ao trabalho do médico Magnus Hirschfeld, fundador, em 1897, do Comitê Científico-Humanitário e, em 1919, do Instituto de Pesquisa Sexual. As duas instituições ofereciam serviços médicos e educacionais para a comunidade e organizaram a luta contra o preconceito e pela descriminalização da homossexualidade na Alemanha. Até a ascensão do nazismo, em 1933, Berlim foi conhecida por sua cena noturna vibrante e diversificada, com clubes e bares que atendiam à comunidade e uma pródiga produção artística que refletia temas relacionados à sexualidade e às identidades de gênero.

Em Paris, a vida LGBT+ floresceu nos anos 1920 e 30, quando a cidade atraiu artistas, escritores e intelectuais de todo o mundo. Embora as leis que criminalizavam a prática homossexual tenham sido revogadas em 1791, durante a Revolução Francesa, uma lei menos conhecida de atentado ao pudor, que frequentemente atingia a comunidade LGBT+, foi implementada em 1960 e só foi revogada duas décadas depois. Hoje Paris tem uma das cenas LGBT+ mais intensas do mundo. 

Cena da Parada de Nova York, 1971, em manifestação pelos direitos LGBT+ | Foto: Getty Images

Foi em Nova York, na noite de 28 de junho de 1969, que tudo começou a mudar, com a Revolta de Stonewall, um marco que impulsionou o movimento LGBT+ mundialmente. Na época, a homossexualidade ainda era considerada ilegal em quase todo os EUA e lugares gays, como o Stonewall Inn, no Greenwich Villlage, eram frequentemente alvo de batidas policiais. Naquela noite, a polícia invadiu o bar para, como sempre, achacar e prender pessoas que o frequentavam. Em vez de se dispersar, como normalmente acontecia, a multidão começou a resistir e confrontar os policiais. O fato repercutiu em todo o planeta e, a partir de então, começaram a surgir diversas organizações, grupos de ativismo e manifestações em defesa dos direitos LGBT+. 

Reconhecimento e celebração 

Na comemoração do primeiro aniversário da Revolta de Stonewall, foi realizada a primeira Parada do Orgulho LGBT+, originalmente chamada de Christopher Street Liberation Day (Dia da Libertação da Christopher Street, rua onde fica o bar), que saiu do Christopher Park e subiu pela Sexta Avenida até o Central Park, ganhando uma imensa visibilidade. Por isso, o 28 de junho é atualmente celebrado em Paradas nas principais cidades do planeta e é conhecido como o Dia Mundial do Orgulho LGBT+.

No Christopher Park foi colocado um famoso conjunto de esculturas de George Segal, representando pessoas da comunidade da época, que é uma espécie de meca para turistas LGBT+: todo mundo precisa pelo menos uma vez na vida fazer reverência – e uma selfie. 

O principal símbolo da comunidade, a bandeira do arco-íris, foi criada por Gilbert Baker para a Parada de San Francisco de 1978. A inspiração veio da canção Over the Rainbow, de Judy Garland, um ícone da comunidade gay e espécie de hino não oficial. As seis cores do arco-íris LGBT+ representam a diversidade das identidades e expressões de gênero dentro da comunidade.

Conquistas no Brasil 

No Brasil, o movimento LGBT+ começou a ganhar força nas décadas de 1970 e 80, com a criação dos primeiros grupos ativistas. O primeiro foi o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, em 1978, formado por artistas e jornalistas paulistas e cariocas (entre eles João Silvério Trevisan, Darcy Penteado, Agnaldo Silva e Jean-Claude Bernardet) a partir da publicação do jornal O Lampião da Esquina, seguido pelo Grupo Gay da Bahia, em 1980, a organização mais antiga ainda em atividade no Brasil. Na época, o contexto político era marcado pela ditadura militar e pela repressão aos movimentos sociais, o que tornava a luta pelos direitos LGBT+ ainda mais difícil. 

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Parada de Nova York, 1980 | Foto: Getty Images

Desde a redemocratização foi construído um longo caminho para o reconhecimento da cidadania plena no Brasil. Alguns dos passos mais marcantes dessa jornada foram a proibição da chamada “cura gay” pelo Conselho Federal de Psicologia, em 1999; a permissão do processo de redesignação sexual para mulheres trans pelo Conselho Federal de Medicina, em 2002, e, em 2010, para homens trans; o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, da união estável entre casais de pessoas do mesmo sexo, em 2011; a aprovação pelo Conselho Nacional de Justiça de uma resolução que obriga os cartórios a realizar o casamento civil entre casais homoafetivos em 2013; o uso do nome social em órgãos públicos, em 2016; a autorização pelo STF para a mudança do nome de registro de pessoas trans, mesmo sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual, em 2018; e finalmente, em 2019, a tão aguardada criminalização da lgbt-fobia, equiparada ao crime de racismo.

As grandes cidades brasileiras têm animadas cenas LGBT+ e São Paulo e Rio costumam ser reconhecidas em publicações internacionais como algumas das melhores vidas noturnas para o público. Importante mencionar também as centenas de Paradas espalhadas pelo país (a paulistana é a maior do mundo!) e o Festival MixBrasil, de longe, o maior evento cultural sobre a diversidade sexual na América Latina. 

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Toronto está entre as cidades mais gay-friendly do mundo | Foto: iStock

Mesmo com as tentativas nos últimos anos de implementar retrocessos sociais, o Brasil continua sendo um dos países mais avançados em termos de legislação em defesa dos direitos LGBT+. Apesar desses avanços, a luta pela igualdade de direitos ainda está longe de ser vencida. Ainda hoje as pessoas LGBT+ sofrem com a discriminação, a violência (o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo) e a exclusão social (na prática, muitos direitos não são reconhecidos no SUAS – Sistema Único de Assistência Social). Por isso o tema da 27ª Parada de São Paulo, realizada em junho de 2023, é “Queremos Políticas Sociais para LGBT+ por Inteiro e Não pela Metade”.

A luta pelos direitos não é apenas uma questão de justiça social. Também é uma questão de saúde pública. As pessoas LGBT+ enfrentam taxas de depressão, ansiedade, suicídio e outras condições de saúde mental muito maiores do que a média da sociedade. A discriminação e o preconceito limitam o acesso aos serviços de assistência social e saúde, sobretudo das pessoas trans, aumentando os riscos de doenças e problemas de saúde física e mental.

Ao redor do mundo, os direitos LGBT+ variam significativamente. Enquanto alguns países têm leis progressistas e proteções abrangentes, outros ainda negam direitos básicos e criminalizam a homossexualidade com castigos que vão desde a prisão até a pena de morte. Antes de viajar vale consultar a situação em cada país para evitar problemas. Eu, particularmente, evito visitar lugares onde minha integridade física e a de pessoas da minha comunidade estejam em risco. 

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Cape Town é sinônimo de diversidade | Foto: Getty Images

Antes de viajar, vale saber

Países como Canadá, Holanda, Suécia, Dinamarca, Islândia, Espanha, Portugal, Argentina, Uruguai e África do Sul são campeões em direitos igualitários, políticas antidiscriminatórias e leis de proteção a identidades de gênero. Outros, como Taiwan, México, Colômbia, Chile e Malta, têm avançado significativamente na promoção de direitos a pessoas LGBT+. No entanto estão indo na direção contrária Polônia, Hungria, Turquia e Rússia, onde, embora a homossexualidade não seja formalmente criminalizada, a comunidade enfrenta desafios significativos, com recentes implementações de políticas abertamente anti-LGBT por seus governos autoritários. 

Entre os países que apresentam os maiores riscos para turistas e comunidade LGBT+ estão Uganda, Nigéria, Tanzânia, Sudão, Gâmbia, Irã, Arábia Saudita e Iêmen, devido a criminalização da homossexualidade, falta de proteção legal, discriminação generalizada e violência. 

Amor é amor 

É preciso continuar lutando para que todas as pessoas tenham os mesmos direitos e oportunidades em todo o mundo, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. O movimento LGBT+ é um exemplo de resistência e perseverança. A luta pela igualdade de direitos deve ser uma luta de todos e uma batalha pela justiça social e pelo respeito à dignidade humana. Afinal, amor é amor. 

Matéria publicada na edição 11 da Revista UNQUIET.

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