Soure, sabores do Pará ancestral

Regida pelas marés, o município mais importante do Marajó celebra uma gastronomia baseada na cultura marajoara, pungente, com sabores que transcendem o Pará e residem na ancestralidade da floresta, das praias e dos mangues

Margem de rio em Soure, na Ilha de Marajó, com floresta amazônica densa e palmeiras refletidas na água, Pará, Brasil

Enquanto aguardava o meu embarque no terminal hidroviário de onde partem os barcos que ligam Belém à Ilha de Marajó, eu ponderava como o Brasil é um amálgama de muitas e diferentes camadas, que não cabe em definições rasas. Em poucos dias, o destino à minha espera confirmaria isso.

Uma visita exitosa ao maior arquipélago fluvio-marítimo do mundo talvez dependa dessa compreensão da multiplicidade e das contradições que nos constituem como nação. Tudo ali convida a enxergar o Marajó não como ponto turístico, mas como o encontro com um “país” dificilmente traduzível em informes publicitários.

É preciso entender sua rusticidade e saber abraçar eventuais dificuldades de logística, bem como as imprevisibilidades que fazem parte da vida na ilha. Improviso e criatividade para enfrentá-las nunca faltaram ao povo marajoara, sabedor de que, para existir naquele território, é preciso, mais que ciência, alguma fé no que os olhos não veem.

Quem manda no Marajó é a maré

Em Soure, os rios e a floresta estão no comando. Se chove, pode chover muito. Se a maré avança, pode avançar muito – a famosa Praia de Pesqueiro, por exemplo, por obra de um desses avanços da maré, tornou-se recentemente um arremedo do que já foi.

Vista aérea da Praia do Pesqueiro, em Soure, mostrando o encontro de rio e mar nas águas da Ilha de Marajó, Pará
Nas franjas do Marajó, o encontro de rio e oceano desenha paisagens mutantes, laboratório vivo do movimento das marés | Foto: Getty

Bastam dois dedos de prosa com os barqueiros que navegam pelo Rio Paracauari para entender que eles se orientam pela Lua e pelo conhecimento empírico que herdaram dos antepassados, pois, no encontro de rio com mar, dados matemáticos não conduzem com precisão. “Quem manda no Marajó é a maré. Quem manda na maré é a Lua”, dizem os versos da canção Barreira do Mar, entoada em todas as rodas de carimbó da cidade. 

O carimbó, aliás, merece o compromisso do visitante. Convém, ao chegar, informar-se dos dias e horários das rodas que acontecem durante a semana. O ritmo, que é uma manifestação cultural enraizada no DNA dos nativos, encontra no Conjunto Tambores do Pacoval sua expressão mais tradicional. Intraduzível, a fusão de música com encantaria tem também autênticas demonstrações em espaços como o Quintal do Carimbó e a brejeira tapiocaria Dona Bila. O restaurante da charmosa pousada O Canto do Francês é outro endereço que tem apresentações semanais, com um público mais de turistas do que de locais. 

Se a força das marés surge nos versos do carimbó nas noites da cidade, é ela também a protagonista em suas manhãs e tardes. As praias de Soure podem revelar paisagens bastante diferentes a depender do horário em que se visite, se na maré alta ou na baixa. Tais transformações ao longo do dia é uma das mais poéticas atividades às quais se entregar. 

Fachada azul e amarela de casa tradicional na comunidade da Praia do Céu, em Soure, destacando arquitetura ribeirinha marajoara
Fachada de uma das casas da colorida vila da Praia do Céu
Prato de turu empanado com molho, farofa e vinagrete, destaque da gastronomia marajoara típica de Soure, Ilha de Marajó
Da floresta ao prato: o turu, guardião dos manguezais, vira sabor e identidade à mesa de Soure

São muitas as praias à disposição, desde as desertas, como a que se revela nas visitas guiadas à Fazenda São Jerônimo, até as que são predileções locais, como Barra Velha, considerada por boa parte dos moradores a mais bonita daquela orla. De fato, a exuberância da paisagem amazônica, a arquitetura ribeirinha dos restaurantes, o design vernacular em suas fachadas, tudo convida a ficar, especialmente em dias de semana fora da temporada, quando Barra Velha permanece vazia – em feriados e fins de semana, pode estar insuportavelmente cheia. Entre os quiosques debruçados sobre a areia, o Pai d’Égua serve uma comida simples e local, como caranguejo, peixe frito, filé de búfalo, e é dos poucos lugares que, além de peixe frito, fazem peixe na brasa.

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Búfalos marajoaras atravessando áreas alagadas em Soure, refletindo o modo de vida tradicional da Ilha de Marajó, Pará
Majestosos e tranquilos, os búfalos marajoaras cruzam as águas rasas como se lessem antigos mapas que só eles conhecem | Foto: iStock

Outro destino que merece longas horas de contemplação é a Praia do Céu. O encantamento se inicia no caminho, diante dos campos alagados, de uma beleza quase irreal dentro da Fazenda Bom Jesus, por onde se dá o acesso às comunidades Caju-una e Céu, que ostentam poético casario.

Se Caju-una não tem estrutura para refeições, já na Praia do Céu há quiosques com mesas na areia, onde é possível se instalar para observar o ir e vir das águas. No restaurante da pousada Brisa do Céu, há sempre peixe frito ou em caldeirada, na companhia simples e boa de arroz, feijão, farofa e vinagrete. 

Sagrados manguezais

Se engana quem chega a Soure com a expectativa de encontrar apenas paisagens praianas. O rico ecossistema de mangue é parte fundamental do cenário natural e da biodiversidade da ilha. Estar lá e não fazer um passeio por algum de seus igarapés de mangue, como o famoso Igarapé do Mata Fome, é conhecer o destino pela metade. Os pequenos barcos chegam muito próximo às raízes das árvores, emaranhadas em desenhos que arrancam interjeições mesmo do mais blasé dos visitantes.

Banca no Mercado Municipal de Soure com frutas, sucos artesanais e produtos locais da cultura alimentar marajoara
No mercado de Soure, cores, aromas e saberes ribeirinhos contam histórias de um Brasil profundo e generoso
Filé marajoara servido com queijo de búfala derretido e arroz, prato típico da culinária de Soure, Ilha de Marajó
O filé marajoara celebra o território: carne de búfalo, queijo de búfala e técnicas que atravessam gerações na Ilha de Marajó
Barco colorido “Sempre com Deus” ancorado em praia de Soure, simbolizando a cultura ribeirinha marajoara no Pará
No rio Paracauari,barcos pintados à mão conduzem viajantes por águas onde mitos, ciência e maré se entrelaçam

Nos caminhos que levam a eles, boas surpresas costumam surgir – como um mergulho de um boto tucuxi ou as revoadas de biguás. Com um pouco mais de sorte, dependendo do horário do passeio, revoadas de guarás podem comparecer.

Sabor marajoara

É nas árvores das áreas de manguezais que ocorre o turu, um molusco típico da costa paraense, importante alimento e fonte de renda das famílias ribeirinhas. Pode ser consumido apenas com sal e limão, mas o caldo feito dele é uma iguaria presente nos cardápios marajoaras. Alguns passeios, como os organizados pela Marajó Imperial Tur, podem incluir a atividade de extração do molusco amazônico.  

Também os búfalos, animais vitais para a cultura e a economia daquele território, interagem bem com o mangue por gostar de água e sombra. Encontram-se por toda parte: praias, ruas, praças, estradas. São eles os verdadeiros donos daquela terra. 

Potes de doce de leite e manteiga de búfala produzidos na Fazenda Mironga, referência em produtos marajoaras de Soure
Doces de leite produzidos e servidos na experiência de degustação da Fazenda Mironga
Pães caseirinhos recém-assados em forno a lenha em padaria tradicional de Soure, expressão da panificação marajoara
Pão “caseirinho” direto do forno em padaria em Barra Velha
Peça de queijo de búfala da Ilha de Marajó sobre tábua de madeira, produto artesanal típico de Soure, Pará
Queijo de búfala produzido na Fazenda Mironga

Sua carne está presente em pratos típicos, como o filé marajoara e o frito do vaqueiro. Além da carne, o queijo feito de seu leite é um alimento de imensa importância cultural no Marajó, tendo obtido o reconhecimento de indicação geográfica desde 2021. O contexto dessa importância pode ser compreendido na interação com produtores locais, como a Fazenda Mironga, que recebe grupos em visitas guiadas – uma experiência que se encerra com um café da tarde em que, além do queijo, brilham o delicioso doce de leite de búfala de produção própria, bolos, sucos de frutas e ótimas tapiocas. No belo cenário da propriedade, aprende-se muito sobre o queijo símbolo da região, que é uma companhia indispensável ao pão caseirinho nos cafés da manhã de Soure. 

Esse pão alongado, nomeado no diminutivo, é a resposta paraense ao pão francês, onipresente em tantos lugares do Brasil. O bairro de Barra Velha abriga uma antiga padaria onde ele ainda é feito manualmente e assado em forno a lenha. 

Embora a dupla pão caseirinho com queijo do Marajó seja uma presença obrigatória nos desjejuns das pousadas locais, sugiro que o visitante tire ao menos um dia para saboreá-la no Mercado Municipal da cidade, na bucólica praça à sua frente, onde há mesas sob as árvores. Outro lugar que serve uma versão particularmente boa da dupla é a tapiocaria Dona Bila, onde o queijo é gratinado.

Sejam os séculos de produção do queijo batizado com o nome da ilha, sejam os milhares de anos que habitam os grafismos da cerâmica marajoara ou as evocações imemoriais que soam nos tambores do carimbó, tudo em Soure é oração ao tempo e mantém um constante diálogo com a ancestralidade. 

Em um mundo onde a massificação do turismo atinge uma velocidade impressionante, a capital informal do Marajó ainda é um dos destinos profundamente autênticos que o Brasil tem a oferecer ao viajante, qualquer que seja sua origem.

Clique aqui para ler a matéria na edição 21 da Revista UNQUIET.

Prato marajoara com caranguejos, jambu e temperos regionais servido em cuias de barro “Pai d’Égua”, culinária típica de Soure, Ilha de Marajó
Entre jambu, caranguejos e cerâmica artesanal, a culinária marajoa no quiosque Pai d’Égua
Mapa ilustrado da Ilha de Marajó, destacando Pará, Belém, Amapá e Maranhão, com ícone de búfalo representando a cultura marajoara
Ilustração: Antônio Tavares

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