Na memória, um vendaval de lembranças borbulhava diante do belíssimo cenário, espaço em que se fundem Caatinga e Floresta Tropical. Eu havia desembarcado no aeroporto de Petrolina, às margens do rio São Francisco, o Velho Chico, em Pernambuco.
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Dali seguimos numa viagem de 300 quilômetros através da planície rumo ao sudeste do Piauí. Exatamente um ano antes, estive na região de São Raimundo Nonato, no Piauí, onde pude conhecer o parque nacional da serra das Confusões com 823 mil hectares, localizado entre os municípios de Guaribas e Caracol. Naquele período, o Parque Nacional da Serra da Capivara estava fechado devido à pandemia.
Eu desfrutava da paisagem homogênea da estrada e recordava da visita na serra das Confusões, lugar encantador com seus cânions, vales, desfiladeiros e grutas. Tive o privilégio de contar com o fotógrafo André Pessoa como guia. Foi ele quem me apresentou locais até então desconhecidos do público, além de me mostrar verdadeiras maravilhas da natureza presentes neste novo parque da Caatinga.
Desta vez, com a abertura pós-pandemia, eu iria conhecer e desfrutar do maior e mais antigo acervo de pinturas rupestres e sítios pré-históricos do continente americano: o Parque Nacional da Serra da Capivara – com a sua fascinante concentração de sítios arqueológicos recheados de arte milenar, religião e cultura, percorrendo os caminhos dos povos que habitaram esta região há milênios.
O parque foi declarado pela Unesco (órgão da ONU para Ciência, Educação e Cultura), no ano de 1991, Patrimônio Cultural da Humanidade. Desta vez, André me aguardava para finalmente desbravarmos parte da reserva, 129 mil hectares com um perímetro de 240 quilômetros, ou seja, do tamanho da metrópole de São Paulo. A cidade de São Raimundo Nonato é a porta de entrada para desbravar os caminhos da pré-história americana. O lugar conta com diversas pousadas, restaurantes, mercados, mas sobretudo com pessoas que conhecem profundamente o rico passado local e os mistérios da Caatinga.
Seguimos por mais 20 quilômetros até o Rupestre Eco Lodge, um complexo hoteleiro onde tudo já estava organizado para a nossa expedição. Começamos percorrendo o baixão das Andorinhas e o desfiladeiro da Capivara, onde estão os primeiros sítios arqueológicos descobertos pela renomada arqueóloga paulista Niède Guidon. Ainda na década de 1970, ela começou a escavação da toca do Paraguaio e se surpreendeu com as milenares pinturas da toca de Cima do Pajaú. Em seguida, desbravamos o boqueirão da espetacular Pedra Furada, além do mirante no vale homônimo.
Na sequência, na companhia dos experientes guias do parque, seguimos para a nossa primeira etapa da expedição: desbravar vales que lembram paisagens lunares com fauna e flora fascinantes, específicas da Caatinga.
Na vegetação já foram classificadas mais de mil espécies, boa parte delas endêmicas, ou seja, encontradas apenas nesse bioma e com árvores como aroeiras, angicos, paus-d’arco, jatobás e cactos famosos como o xiquexique, o mandacaru, o facheiro, o quipá e muitas outras espécies espinhentas. Na fauna, o destaque são os veados, uma infinidade de tatus, caititus (espécie de porco-do-mato) e as temidas onças. Entre as aves o destaque vai para as araras-vermelhas, a águia chilena, o urubu rei e mais duas centenas de espécies.
Baixão das Andorinhas
No baixão das Andorinhas o visual é impactante, as formações rochosas de arenito revelam uma paisagem que nos transfere para outro período da Terra, com mirantes e encostas, lugar onde cânions e vales rasgam o horizonte. Um panorama de fato extra-sensorial. Ao entardecer, acontece um maravilhoso espetáculo, quando os andorinhões em bandos dão voos rasantes para se abrigarem em pequenas cavernas.
Finalmente entramos no túnel do tempo, na colossal toca do Alto da Entrada do Pajaú. O sítio arqueológico que possui as pinturas mais antigas da região e foi pesquisado pela arqueóloga Niède Guidon e sua equipe é fantástico. O local é um imenso portal com centenas de imagens dos tempos ancestrais e que serviu de abrigo aos nossos antepassados.
As pinturas saltam do paredão rochoso, algumas parecem ter sido feitas há pouco tempo. Cenas que retratam o dia a dia, caçadas, rituais e tudo maravilhosamente conservado. Reflito sobre a trajetória de Niède Guidon desbravando, destemida, o caminho e superando os obstáculos. Na época, década de 1970, ela tinha como transporte apenas as mulas que carregavam seus equipamentos.
Seguimos para a toca do Paraguaio, o primeiro sítio visitado e escavado por Niède Guidon durante as expedições pioneiras naquela imensidão. Pinturas explodem diante da imensa pedra e representam cenas de dança, sexo, caça e muitos outros temas, alguns indecifráveis.
“Neste local foram encontradas duas sepulturas durante as escavações: uma com 8.670 e a outra com 7 mil anos”, explica o guia. “Durante milênios, espécies da megafauna existiram na região e parece que conviveram com nossos ancestrais”.
As espécies mais comuns da megafauna eram a preguiça gigante, o mastodonte, o gliptodonte (parente ancestral do tatu) e o tigre de dentes-de-sabre. No magnífico Museu da Natureza é possível observar réplicas e fósseis de animais imensos. Havia também dezenas de espécies de médio e pequeno porte, que eram caçados pelos habitantes pré-históricos. A extinção desses animais ocorreu há aproximadamente 10 mil anos, no fim do período chamado Pleistoceno, com a consequente mudança climática global.
Estávamos famintos como deveriam ser as espécies da megafauna. Ancoramos no coração de São Raimundo Nonato, mais especificamente no restaurante do Donizete. Nosso grupo pediu suculentos pratos regionais como a famosa carne-de-sol que vem acompanhada de feijão tropeiro, farofa, mandioca frita, arroz e vinagrete. Devoramos absolutamente tudo!
Boqueirão da Pedra Furada
Por incrível que pareça, naquele sol sem tréguas, estávamos prontos e renovados para seguir para outra joia da coroa, os principais sítios da serra da Capivara que ficam no circuito do BPF – Boqueirão da Pedra Furada, o mais visitado do parque nacional. Ele abriga a imponente Pedra Furada e a capela sistina da arqueologia americana, a toca do Boqueirão da Pedra Furada, com centenas de figuras milenares.
Entre os galhos secos da Caatinga surge a pedra, diante de um cenário avassalador. A imensa formação geológica é, na verdade, resultado dos ventos e de uma erosão milenar, assemelhando-se a um imenso anel com o fundo infinito do céu azulzinho. Um convite magnético para conhecer o templo maior de outras eras: a toca do Boqueirão da Pedra Furada, o maior sítio arqueológico do parque. Seu paredão, com cerca de 70 metros de altura, abriga mais de 1.100 desenhos rupestres datados entre 3 e 12 mil anos. As escavações realizadas no local começaram em 1978 e foram finalizadas mais de 10 anos depois, já na década de 1990.
Hoje, estruturado para receber centenas de visitantes, uma grande passarela de metal permite a observação e, claro, uma contemplação prazerosa das pinturas rupestres, sem o risco de tocá-las. Essas obras de arte foram feitas por diversos grupos pré-históricos em diferentes períodos. No local, há duas tradições culturais definidas pelos pesquisadores: a Nordeste e a Agreste. A tradição Nordeste, que é predominante, existe há pelo menos 12 mil anos. As pinturas trazem figuras humanas e animais, sempre em movimento e representando o que parecem ser cerimônias, caçadas, máscaras (talvez cocares), sexo e figuras antropomórficas (formas humanas). Já as pinturas da tradição Agreste têm desenhos canhestros que quase nunca mostram ação, com exceção das cenas de caça.
No Boqueirão da Pedra Furada há desenhos das duas escolas. Provavelmente nossos ancestrais tinham seus momentos de estados alterados de consciência. As pinturas explodem no paredão com cores vivas: vermelho, branco, preto, cinza e outras sutilezas. Os grafismos são de diversos tamanhos e o êxtase é garantido. André Pessoa acompanha nossa jornada. “A localização da Toca do Boqueirão da Pedra Furada é fascinante: essa região marcou o limite da fronteira entre a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica, até que há 10 mil anos um período de seca começou a transformar tudo.” Entre as formações tropicais surgiram o Cerrado e a Caatinga. Existem ainda alguns pontos na região com matas originais, remanescentes, preservadas nos trechos mais úmidos como desfiladeiros e boqueirões. “Essa diversidade de ambientes naturais é a herança deixada pela própria natureza e as mudanças climáticas.”
No dia seguinte, retornaria para Petrolina, estava realizado com os descobrimentos e as maravilhas da serra da Capivara. Voltarei em breve para conhecer dois museus locais – o do Homem Americano e o da Natureza, ambos ainda fechados em função das restrições da pandemia. Esses espaços são considerados dois monumentos da ciência e do conhecimento, com amplas coleções de fósseis e instalações moderníssimas.
Como visitar o Parque Nacional da Serra da Capivara
Para conhecer os circuitos turísticos do parque é necessário a presença de um condutor de visitantes, uma modalidade local de guia turístico. Esses profissionais foram treinados pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), e são credenciados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), para percorrer as trilhas e os sítios arqueológicos da reserva federal. O parque abre às 6h da manhã e pode ser visitado até as 17h.
As entradas são rigidamente monitoradas por equipes compostas apenas por mulheres, guardiãs que verificam na portaria a autorização e a presença do condutor. Atualmente, são cerca de 30 trabalhando nas guaritas, serviço que desenvolvem com extremo zelo e muita simpatia.
Rupestre Eco Lodge
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- O projeto leva em conta as características da região, contratando profissionais locais com projetos totalmente focados na sustentabilidade.
- Utilização de energia solar, reuso da água, banheiros químicos, destinação dos resíduos sólidos, iluminação adequada para ambientes selvagens, entre outras características.
- A madeira utilizada no projeto é eucalipto tratado e aprovado pela legislação.Separação de lixo, reciclagem e destinação adequada.
- Separação de lixo, reciclagem e destinação adequada.
- Parte do valor da diária do hotel (cerca de 2,5%) destinada como doação para o Viveiro Mata Branca, projeto do Instituto Ecológico Caatinga (IEC), ONG sem fins lucrativos que trabalha na Serra Vermelha.
- O Viveiro Mata Branca mantém a produção de mudas de espécies nativas da Caatinga. Anualmente realizam o plantio e distribuição gratuita de milhares de mudas.
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instagram.com/rupestreecolodge
Os jornalistas Arthur Veríssimo e André Pessoa viajaram a convite da operadora paulistana Lila Tur e do Rupestre Eco Lodge em São Raimundo Nonato (PI)
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