Educação que refloresta sonhos

Como a Fundação Almerinda Malaquias, no coração da Amazônia, está semeando conhecimento e pertencimento às margens do Rio Negro

Para que uma floresta devastada renasça e finque suas raízes, certos elementos precisam estar presentes. É preciso plantar a semente, germiná-la, garantir que diferentes espécies coexistam e se integrem e acompanhar seu crescimento ao longo do tempo ‒ até que, enfim, suas bases encontrem solo firme. Não é uma tarefa fácil, tampouco linear: exige cuidado, presença e escuta, dia após dia. Mas os frutos maduros colhidos ao longo do processo anunciam que esse é o caminho a ser trilhado.

O resgate de uma cultura apagada por séculos segue uma lógica semelhante. Estímulos são vitais para reacender a conexão com o passado, esforços são essenciais para despertar o senso de pertencimento e reconhecer a existência de outros modos de vida é indispensável para construir o próprio lugar no mundo. Por fim, é preciso coragem para começar ‒ e confiança no processo, instável e longo como todo ciclo vivo. Porque, assim como na floresta, os frutos só amadurecem quando há tempo, diversidade e dedicação.

Essa é hoje uma raridade no planeta Terra, onde os seres parecem achar mais valente o silenciamento identitário do que o empoderamento de expressões distintas. Mas clareiras ainda permitem que a luz toque o chão, assim como existem pessoas e projetos que entenderam que a criação de vínculos é mais rica do que a imposição de uma identidade única e dedicam suas vidas para reerguê-las e incluí-las.

Consciência e Educação 

É o caso da Fundação Almerinda Malaquias, liderada atualmente pelo empresário Ruy Tone, no nordeste do estado do Amazonas. Após anos viajando o mundo e conhecendo iniciativas de desenvolvimento social e educação ambiental acopladas ao turismo, Ruy escolheu o município de Novo Airão para investir no setor. Lançou a Expedição Katerre em 2004, operadora de experiências fluviais, construiu o inovador hotel Mirante do Gavião e, posteriormente, uniu-se à já estruturada FAM para fomentar o conhecimento dos mais de 15 mil habitantes da cidade.

Escola da Comunidade da Cachoeira

A área de Novo Airão tem o tamanho do território da Suíça e inclui 50 comunidades, que se dividem entre ribeirinhas, indígenas e quilombolas. Nos roteiros criados pela Katerre, que partem rumo ao baixo e médio Rio Negro, a visita a algumas delas figura entre as vivências mais marcantes, atestada tanto pela alegria de seus moradores em compartilhar costumes e saberes quanto pelos viajantes, que se transportam para uma realidade completamente diferente da sua e regressam com a consciência expandida.

Porém muitos desses povos tiveram suas origens apagadas durante a colonização e o ciclo da borracha. Mais recentemente, devido à dificuldade de acesso e à escassez de infraestrutura, a educação (um direito de todas as crianças) vinha sendo trabalhada sem a atenção devida, resultando em escolas deterioradas e um ensino fragilizado. Foi então que, em 2021, nasceu, da inquietude de Ruy (em parceria com a Secretaria Municipal de Educação e doadores privados), o Projeto Educação Ribeirinha, com o objetivo de fortalecer e potencializar a educação básica ao longo das 23 escolas da região.

O projeto consiste em três fases: construir ou reformar escolas, capacitar os professores e promover o intercâmbio entre os educadores. Iniciar pela infraestrutura é uma forma de devolver dignidade aos mais de 750 alunos. “Isso dá ânimo para que eles estudem com mais alegria”, comenta a professora Adriane, do povoado do Tambor. As novas estruturas, com design sustentável do Atelier Marko Brajovic, inspiram-se nas construções regionais: base elevada, estrutura e fechamentos de madeira, finalizados por mão de obra local. São edificações imponentes, o que confere ainda mais valor à educação.

Ruy Tone com os alunos na hora da merenda

Outro fator importante na história é a criação de áreas de preservação, como o Parque Nacional do Jaú. Por um lado, a proteção do pulmão do mundo é imprescindível para a saúde do planeta. Por outro, foi o que fez centenas de pessoas serem realocadas de seus territórios. Povos que se relacionam tão profundamente com a floresta e os seus familiares que não conseguem se desvincular dela, além do receio de viver na cidade. “Há três problemas difíceis. Um é a moradia. Outro é o emprego. Tudo precisa de dinheiro. E o terceiro são as famílias grandes, com 12, 13, 14, 15 membros, em que existe o risco da droga. Aqui não tem esse produto.” Explica José Alberto, presidente do Tambor ‒ a mais remota, onde a maior parte das pessoas se instalou, resultando em mais de 80 moradores atualmente.

O Tambor, inclusive, foi o destino final da Visitação Ribeirinha, uma expedição inédita da Katerre. Ao todo, foram mais de 800 km navegados e cinco comunidades visitadas ‒ Bom Jesus do Puduari, Mirituba, São Lázaro do Jaú, Tambor e Cachoeira ‒, em busca de acompanhar de perto o andamento do projeto. É um processo longo e desafiador, mas Ruy percebeu algo valioso: é preciso agir. “É tudo de grão em grão, né? É um processo novo. Mas a gente tem que estar sujeito a isso, querer o amadurecimento de todos os processos”, diz, enquanto escuta, com calma e atenção, as demandas específicas de cada povo. “Só assim a gente consegue de verdade fazer uma geração inteira, duas gerações inteiras, para tentar mudar alguma coisa.” 

A antiga escola da Comunidade de Mirituba

Obstáculos no Caminho para a Superação 

Entre tantos entraves, a melhoria da rotina do professor é um dos mais urgentes. Concursados ou contratados, eles mantêm sua moradia nas cidades, para onde retornam uma semana a cada dois meses. Suas casas nas comunidades são entregues pela prefeitura — outro ponto que Ruy faz questão de transformar. Portanto, ainda são construídos a casa do professor, banheiros para os alunos e uma cozinha para a merendeira. Mesmo assim, Claudimar, educador da Cachoeira, atesta: “A gente tem um espaço maior, as cadeiras são mais confortáveis para os alunos, a estrutura da escola nova mudou totalmente, para a gente desenvolver um trabalho melhor para eles”. 

Dentro das salas de aula, porém, as dificuldades assumem outra forma. O mesmo instrutor precisa ter conhecimento sobre todas as matérias e coordenar uma turma com pelo menos oito crianças, de idades distintas. Além disso, como muitos educadores não são naturais dos territórios onde ensinam, o conteúdo sobre as origens locais acaba ficando à deriva. E Ruy sabe que este é o próximo passo do projeto: “Não há melhora de educação sem você trabalhar o conteúdo”. 

Dalvanina e três de seus filhos, moradores de Lázaro

Mesmo sendo um caminho longo, o mais importante é permitir que essas pessoas possam sonhar novamente e priorizar os seus caminhos. “Eu sonho alto. Eu sonho que eles terminem o estudo para ter uma profissão. Professor, médico, qualquer coisa. Como eu falei para eles: ‘Meus filhos, vocês lutem que eu vou lutar por vocês, hein?’”, comenta Dalvanina, moradora de Lázaro e mãe de sete crianças. A riqueza da Amazônia com certeza está na sua abundância, e seus diamantes são os guardiões que nela habitam. Talvez um dia entenderemos de vez que é na relação com os demais seres que nós fazemos o mundo.

Matéria publicada na edição 20 da Revista UNQUIET.

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