O minúsculo vilarejo de Harads, com menos de 600 habitantes, fica escondido na imensidão da Lapônia sueca. É o lar de infância de Britta e Kent Lindvall, verdadeiros astros da hospitalidade contemporânea. Em meio aos inconfundíveis bosques de coníferas e de seus proeminentes pinheiros, onipresentes em qualquer cartão-postal do Ártico, surge o Treehotel, com somente sete cabanas em formatos tão inusitados quanto os de um disco voador, de um cubo espelhado e de um ninho gigante. Desde sua inauguração, em 2010, o hotel figura na bucket list dos viajantes mais inquietos.
Independentemente da estação, é impossível resistir a uma caminhada nas florestas dessa região quase secreta da terra do Papai Noel. Se a predominância verdejante das estações quentes favorece a observação de ursos, cervos, alces e morsas, na imensidão de tons alvos do longo inverno, as formas das cabanas do Treehotel dão tom onírico às caminhadas sobre a neve ou aos passeios em trenó e snowmobile, marcas registradas da Lapônia.
The Tree Hotel
Benefício expirado
A sensação de perder-se na floresta para encontrar as casas suspensas é similar à que temos ao visitar um museu de arte contemporânea a céu aberto pela primeira vez. Tocado pela experiência criada por Britta e Kent, responsáveis por um impacto positivo e sustentável na pequena Harads, arrisco dizer que será impossível não entrar em contato com a sua criança interior durante uns dias por aqui.
E se esse tipo de emoção é comumente atribuído ao contato com a arte, para os amantes da arquitetura e do design, a experiência no hotel chega a ser catártica. Todas as casas – incluída a impressionante estrutura de spa, com saunas particulares, observatórios e lounges – foram projetadas por medalhões da arquitetura escandinava. Os suecos Tham & Videgård, nomes por trás do renomado Concert Hall de Estocolmo e do celebrado Moderna Museet de Malmö, por exemplo, assinam o famoso Mirrorcube, o cubo espelhado que mimetiza os pinheiros.
Já o renomado estúdio norueguês Snøhetta – conhecido por obras como o recente Under, primeiro restaurante submerso da Europa, e pelo prédio da Ópera e Balé Nacional, ícone moderno, concorrente do castelo da Frozen como foto obrigatória na capital norueguesa – fincou sua marca em Harads com o 7th Room, maior e mais moderno quarto do Treehotel. Vale mencionar que o estúdio é reconhecido internacionalmente pelos projetos que realizou em Nova York, como a zona de pedestres da Times Square e o jardim do 550 Madison Garden.
Pescaria e projetos sociais
A saga (afinal, estamos na terra dos vikings) da construção do hotel é marcada por coincidências que crédulos como eu atribuem ao destino. Após décadas lecionando para adolescentes da escola de ensino médio de Harads, o então professor Kent Lindvall investiu suas economias em uma pequena agência de turismo. Mesmo sem nenhuma experiência no setor, passou a organizar viagens de pescaria, sua grande paixão, mundo afora. Seus clientes eram, principalmente, os amigos que fez ao longo dos anos pescando nos rios do norte da Europa durante as férias. Sua esposa Britta, então a enfermeira mais querida do único hospital do vilarejo, se dedicava ao desenvolvimento de projetos sociais na Suécia e em países próximos, como a Rússia.
Foi a partir de um dos trabalhos iniciados por ela que os dois transformaram um asilo abandonado na Britta’s Pensionat, uma guesthouse onde até hoje funcionam o restaurante e os quartos convencionais do Treehotel [saiba mais na entrevista com o casal]. A pousada serviu de base para as filmagens de The Tree Lover, tocante documentário sobre a relação do homem com a floresta, do cineasta Jonas Selberg Augustsén, também nascido na região. Como a casa construída em uma árvore para a produção do filme foi mantida, Britta passou a oferecê-la a seus hóspedes.
Os feedbacks apaixonados de quem experimentava passar uma noite na altura das copas dos pinheiros não poderiam ser melhores. Alguns mencionaram a sensação revigorante após o sono em meio à natureza, outros contavam como se sentiam reconectados a si mesmos. Em comum, todos relataram ter vivido um sonho de infância. Tudo isso antes da era da ultraexposição digital, quando a busca por experiências do tipo se tornou quase uma necessidade.
Como é comum aos apaixonados pela arte de servir, o pródigo casal da pequena Harads enxergou ali a oportunidade de criar algo que superasse a expectativa de mais gente. Com uma folha desenhada à mão, Kent embarcou rumo a uma de suas aventuras de fly-fishing na Rússia. O grupo contava com três arquitetos. Enquanto preparavam o jantar no acampamento montado às margens do Volga, ele apresentou a ideia, pedindo que cada um desenvolvesse uma casa na árvore à sua maneira, com a condição de que não se comunicassem durante o processo. Sua intenção era ver como eles enxergavam a materialização de seu sonho.
Passados alguns meses, recebeu quatro desenhos completamente diferentes das casas, hoje conhecidas como The Cabin, The UFO, Mirrorcube e Bird‘s Nest. Como entendia pouco sobre hotelaria e nada sobre design, Kent deu a cada um dos arquitetos total autonomia para o desenvolvimento dos interiores de cada projeto. Sem quaisquer recursos, a construção foi, obviamente, negociada a preço de custo.
The Tree Hotel
- A construção foi feita em árvores vivas sem destruir a árvore e sem derrubar nenhuma árvore ou danificar a natureza.
- Os quartos não possuem sistema de esgoto. Os banheiros tem um sistema de combustão moderno e ecologicamente correto onde tudo é incinerado a 600 °C.
- A limpeza é feita sempre com produtos ecologicamente corretos.
- Os banheiros possuem pias eficientes com água corrente suficiente para lavar as mãos, rosto e escovar os dentes. O excedente é recolhido num contentor que é esvaziado diariamente. Os chuveiros estão localizados em um prédio separado.
- O hotel contribui para o desenvolvimento econômico e a qualidade de vida da população local.
- Apoio a produtores e serviços que reflitam autenticamente o estilo de vida e a cultura local.
O nome Treehotel veio somente após a construção da The Cabin, um ano após a inauguração. E após 12 anos funcionando a todo vapor, a essência da simplicidade dos fundadores permanece intacta. Basta uma refeição no simpático restaurante, montado com mesas particulares para cada cabana – com pratos à base de carne de rena e ingredientes típicos da região com variedade abundante de berries – para confirmar que estamos na casa de alguém.
A natureza intocada e a introspectiva cultura da Lapônia – sem visitas ao Papai Noel, nem ansiedade por avistar a aurora boreal (apesar das explosões frequentes na região) são um convite para ler um livro com tranquilidade, apreciando a vista do Rio Lule. Reservar uma sauna particular e caminhar pela floresta descobrindo novos detalhes por diferentes ângulos das cabanas são experiências que ficam na memória. Se é isso que o viajante busca ao sair de casa, não irá se decepcionar.
Na última noite, caminhando de volta para a Dragonfly, senti-me agradecido pela reconexão. Viajante profissional, com passagem por mais hotéis do que consigo me recordar, poucas vezes presenciei a arte da hospitalidade em estado tão bruto. A autêntica vontade de surpreender, a partir do real prazer de servir.
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