Quirguistão irresistível

Uma paisagem complexa e diversa, os desafios de vencer montanhas, lagos, florestas e altitudes em trekkings e cavalgadas, as noites em yurts tradicionais e a recompensa de conhecer – e vivenciar – um país que honra suas origens e exalta sua cultura milenar

Paisagem alpina do Quirguistão com lago de águas turquesa, colinas verdes e cadeia de montanhas nevadas no verão, região de Song-Kul, Ásia Central

Há destinos que não aparecem nos roteiros tradicionais, mas que chamam o espírito aventureiro como um sussurro constante. O Quirguistão sempre foi assim para mim — um país pouco explorado por viajantes, mas de natureza bruta e cultura fascinante. Localizado no coração da Ásia Central, cercado por cadeias de montanhas, trata-se de um território 90% montanhoso. E para quem, como eu, respira montanha, isso já é razão suficiente para querer explorá-lo.

Mas havia mais. Algo na cultura quirguiz me atraía profundamente: a relação visceral com os cavalos, a vida nômade, os yurts — tendas circulares de feltro, brancas como neve, que por séculos abrigaram famílias viajantes — e uma hospitalidade genuína. Eu queria viver isso. Queria dormir em yurts sob o céu mais estrelado que pudesse encontrar, percorrer vales a cavalo, sentir o cheiro do chá quentinho, servido pelas mãos calejadas de quem vive da terra. A viagem começou na capital, Bisqueque, no fim de julho. Uma cidade de ruas largas, praças monumentais e mercados fervilhantes. Fizemos um city tour que passou pela Victory Square, pelo Museu de História e, claro, o imenso Osh Bazar, o coração comercial da cidade. Entre temperos coloridos, pães recém-assados e tecidos bordados à mão, já comecei a sentir que estava entrando em outro tempo.

Formações rochosas avermelhadas do Mars Canyon, no Quirguistão, com ravinas sinuosas e relevo esculpido pela erosão
O Mars Canyon impressiona pela tonalidade e pelo relevo complexo
Pão tradicional quirguiz do Osh Bazar, redondo e decorado, com gergelim e motivos simbólicos da Ásia Central
Pão típico do Osh Bazar

Vencendo Montanhas 

No dia seguinte, encontramos nossos guias e partimos em carros 4×4 rumo a uma rota em que, praticamente, não dormiríamos duas noites no mesmo lugar. A primeira parada foi a Burana Tower, um minarete do século XI, vestígio da antiga cidade de Balasagun, um importante marco da Rota da Seda. Ali, entre pedras entalhadas e artefatos arqueológicos, percebi que estava diante de séculos de história de caravanas que cruzavam continentes.

Seguimos para Karakol, na margem leste do Issyk-Kul, o segundo maior lago alpino do mundo. Com 180 km de comprimento e cerca de 700 m de profundidade, suas águas refletem as montanhas nevadas e parecem infinitas. A ponto de se confundir com o mar. Mas nosso foco estava um pouco mais acima: o trekking até o Ala-kul Lake, a 3.400 m de altitude.

Banca de frutas secas, castanhas e especiarias no Osh Bazar, em Bisqueque, Quirguistão, com grande variedade de produtos locais
Especiarias no Osh Bazar

Foram dois dias e meio de subida técnica e exigente. Passamos por vales verdes, cruzamos pontes improvisadas sobre rios glaciais e vencemos desníveis que queimavam as pernas até de montanhistas experientes. O esforço, porém, foi recompensado: o lago surgiu diante de nós como uma joia esmeralda incrustada entre picos rochosos. Dormimos ali, em um acampamento estruturado em sua beira, e, quando a noite caiu, veio um dos espetáculos mais impactantes da viagem: um céu salpicado de estrelas tão brilhantes que pareciam pulsar. Longe de qualquer luz artificial, desfrutamos o verdadeiro “hotel mil estrelas”.

Na manhã seguinte, subimos novamente até o Ala-kul Pass, a 3.920m, onde minha filha, Kora, com apenas 3 anos de vida, tornou-se a primeira criança a cruzar aquele passo. A admiração dos guias era visível. Para eles, ver uma criança tão confortável carregada montanha acima era raro e inspirador. A descida foi íngreme e técnica, até chegarmos ao Vale de Altyn Arashan, famoso por suas fontes termais. Parte do grupo optou por descer a cavalo, cruzando florestas densas e prados onde cavalos selvagens pastavam livres. O cenário parecia de filme: um rio cristalino serpenteava pelo vale, cercado por pinheiros gigantes. O mergulho nas águas quentes das hot springs relaxou cada músculo cansado.

Músico tradicional quirguiz tocando komuz, instrumento de cordas típico da cultura nômade, em cenário decorado com tecido bordado
Músico com seu instrumento típico no komuz
Trilha em ponte de madeira sobre rio glacial no Ala-Archa National Park, Quirguistão, com montanhas e florestas densas ao redor
Início do trekking até Ala-kul Lake
Espaço tradicional quirguiz com tapetes coloridos, mesa baixa e decoração têxtil, usado para refeições típicas em Bisqueque
Restaurante no trajeto de Ala-kul Lake

Vivência Plena 

Nos dias seguintes, exploramos alguns dos cânions mais impressionantes do país: o Seven Bulls, formado por imponentes rochas vermelhas, o Fairytale Canyon, com formações que lembram castelos e dragões, e, o meu favorito, o Mars Canyon, um pedaço de planeta vermelho perdido na Terra. Ao anoitecer, chegamos ao acampamento de yurts. Naquele silêncio absoluto, com o vento percorrendo as planícies e o céu mais estrelado e limpo que já vi, tive a sensação de que o mundo inteiro cabia ali. No dia seguinte, vivemos um mergulho cultural intenso no Salburun Birds of Prey Festival, que ocorre uma vez ao ano durante o verão. Entre apresentações de falcoaria — uma tradição milenar em que caçadores treinam águias para capturar presas — e competições equestres de tirar o fôlego, fomos recebidos como velhos amigos. Comemos plov, um arroz com carne preparado em grandes panelas, atiramos arco e flecha, conversamos com famílias nômades e compramos artesanatos únicos. A música, os tambores e as águias voando no vale criaram uma atmosfera inesquecível.

Grupo de viajantes a cavalo percorrendo as margens do Lago Song-Kul, no Quirguistão, com planícies verdes e yurts ao fundo
Cavalgada pela margem do Song-kul Lake
Acampamento de yurts brancas às margens do lago de montanha Ala-Kul, cercado por picos rochosos e neve eterna, Quirguistão
Acampamento no Lago Song-Kul
Participantes do Salburun Birds of Prey Festival no Quirguistão, com tambores tradicionais e trajes típicos da cultura nômade.
Interação com a cultura dos povos nômades

Mas o ápice da imersão veio no Lago Song-Kul, a 3.000m de altitude. Durante o verão, famílias seminômades sobem com seus rebanhos para aproveitar o pasto abundante. Ficamos duas noites em um dos melhores acampamentos de yurts da região. Logo na chegada, assistimos um jogo de kok-boru — um esporte tradicional que mistura polo e rúgbi, mas com a carcaça de uma cabra sem cabeça no lugar da bola. Chocante para nós, fascinante para eles. Após a partida, a carne foi preparada para a refeição comunitária em minutos. 

Fizemos então a cavalgada mais bonita da viagem, talvez da vida. Seguimos pela margem do lago, subindo até um mirante com antigos petroglifos. Lá de cima o lago parecia um espelho azul-marinho infinito, cercado por montanhas douradas pelo sol da tarde. Interagimos com os nômades, provamos bolinhas de queijo, que derretem lentamente na boca, galopamos muito e ouvimos histórias de gerações que vivem em harmonia com a natureza.

Falcoeiro do Quirguistão montado a cavalo com águia-real em pleno voo, tradição nômade da Ásia Central praticada nas estepes de Song-Kul
Apresentação de falcoaria
Grupo de viajantes realizando trekking nas montanhas do Quirguistão, com vales verdes e lago alpino ao fundo, região de Ala-Kul
O grupo em ação em um dos trekkings
Prato tradicional quirguiz à base de carne de cordeiro com cebolas e especiarias, acompanhado de legumes frescos e ervas, servido em mesa típica
Prato da culinária quirguiz, à base de carneiro
Competidor quirguiz de arco e flecha deitado no chão durante apresentação tradicional do Salburun Festival, com traje histórico nômade
Performance durante o Salburun Birds of Prey Festival

No último dia, antes de retornar a Bisqueque, exploramos o Ala-archa National Park, a apenas 40 minutos da capital. Fizemos uma trilha até uma cachoeira a 2.800m, rodeada por picos nevados de cerca de quatro horas. E a viagem terminou com um jantar de despedida inesperado, com sushis surpreendentemente bons (sim, Bisqueque tem ótimos restaurantes japoneses), e muitas histórias compartilhadas. Entre risos e abraços, e com o nosso time completo, a certeza era única: não voltaríamos iguais.

O Quirguistão, assim como as Epic Trips, não é para quem busca o luxo de hotéis cinco estrelas. É para quem troca o conforto pela grandiosidade da natureza. Para quem quer sentir o vento frio no rosto a 3.000m, ver a Via Láctea inteira sem precisar de telescópio, ouvir o som dos cascos ecoando nas planícies e provar comidas que carregam séculos de tradição. E é justamente por isso que ele é irresistível.  

Clique aqui para ler a matéria na edição 21 da Revista UNQUIET.

Mapa ilustrado do Quirguistão destacando Bisqueque e fronteiras com Cazaquistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e China, com ícones nômades
Ilustração: Antônio Tavares

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