Engenheiro e administrador, formado pela USP, Ruy Tone é o filho mais velho da segunda geração nascida no Brasil de uma família japonesa que chegou ao país nas embarcações que seguiram a rota do Kasato Maru.
Pai de quatro filhas, cresceu em São Paulo com quatro irmãs e tem como principal característica a objetividade, resultado da mescla da cultura japonesa com a educação alemã de base do colégio Porto Seguro. Suas memórias afetivas de infância são de Ourinhos, onde passava as férias trabalhando nos negócios do avô. A convivência com ele, um empreendedor nato, fundador da primeira rede de supermercados da cidade e de pequenos negócios como uma olaria, o inspirou a seguir uma trajetória polímata, equilibrando carreiras bem-sucedidas na engenharia e no turismo.
O prazer de viajar foi descoberto na adolescência, quando representava o Esporte Clube Pinheiros em competições pelo país. Com os amigos de faculdade, embarcou em longos mochilões pela América do Sul. O sonho de tirar um período sabático, desbravando a Europa, a África e a Ásia, foi adiado devido a morte repentina do pai, dono de uma construtora. Uma pausa para reestruturar o negócio da família foi necessária antes que voltasse a cair na estrada. Para organizar suas próprias aventuras, fundou a Mundus, um laboratório de viagens experimentais com expedições para lugares não comerciais como o Paquistão e o Chade.
Depois de rodar o mundo, fixou raízes na Amazônia com alguns dos projetos sustentáveis mais admirados do turismo mundial. As expedições de sua empresa Katerre proporcionam vivências autênticas ao longo dos rios que serpenteiam a maior floresta do planeta. As linhas arrojadas do hotel Mirante do Gavião se tornaram cartão postal de Novo Airão. Em Manaus, o restaurante Caxiri traduz para não iniciados os sabores nativos de uma mesa tão farta quanto o bioma em que está inserida. Enquanto a Fundação Almerinda Malaquias contribui com o futuro de jovens da região e melhora exponencialmente a educação.
A marchetaria usa sobras de madeiras nobres da região.
Como um engenheiro foi parar no turismo?
Criei uma carreira no turismo para fugir da engenharia. É meu lado B. Sempre gostei da área, mas não do turismo comercial. Sinto que as pessoas que só viajam de um jeito mais padronizado perdem muitas possibilidades de transformação.
E como surgiu a ideia de fundar a Mundus?
Fundei a Mundus basicamente para organizar as viagens que gostaria de fazer. Na época, a Marcia Sztajn, ex-sócia e uma grande especialista que me ajudava a organizar minhas viagens para o Tibete, ficou impressionada com as minhas planilhas de viagem e propôs que começássemos o negócio.
Quais eram seus planos de viagens no último ano?
Tinha duas expedições planejadas. No primeiro semestre retornaria ao monte Kailash, no Tibete, e em novembro iria levar uma expedição para as ilhas Socotra, no Iêmen.
Por que Socotra?
Socotra preenche os requisitos de um destino fora de rota. É considerada a “Galápagos do Oceano Índico”, com muitos animais e vegetação endêmicos – e está fora do radar do viajante brasileiro. As imagens de lá são espetaculares, com natureza de tirar o fôlego e aquela tipologia que a história deixou. É parte do Iêmen, mas um Iêmen que ainda dá para se entrar.
Como é o cliente da Mundus?
Acabamos nos tornando uma agência para clientes que viajaram o mundo todo e que tem tempo para embarcar em longas expedições rumo a destinos não comerciais. Se vamos a um lugar que não é tão exótico, fazemos a viagem de um jeito diferente.
Há algum lugar pouco conhecido por brasileiros que você visitou e que considera imperdível?
Atravessei o Paquistão há dois anos, antes da pandemia. Deu tudo certo apesar do elemento de tensão absurdo que temos antes da chegada lá. Do lado talibã, na fronteira com o Afeganistão, é possível ver etnias locais quase sem registro. No Chade, apesar do histórico guerrilheiro, se vislumbra um dos cenários mais bonitos do planeta. O deserto é impressionante é há uma forte conexão com a Amazônia. No meio do continente africano, falésias gigantescas dão forma ao platô do Ennedi. A água é transparente e no meio do Saara brota um minipantanal. O rio é habitado por uma espécie endêmica de crocodilo gigantesca. Estudos levam a crer que quando éramos um só continente, ali, naquela falésia, nascia o rio Amazonas, quando as águas corriam do lado oposto, de leste para oeste, não como é hoje. É como estar em Marte. Aquilo é Marte…
E como surgiu a Katerre?
Em 2004, as oscilações do dólar levaram a Mundus a criar produtos no Brasil para fugir dos prejuízos da variação cambial. Saímos para conhecer o Pantanal e a Amazônia, mas logo percebemos que nada tinha a nossa cara. Percebi que teríamos que criar toda a operação. Me juntei à Katerre e passei 6 anos montando expedições por lugares que ninguém navegava. Embarcamos rumo a lugares que conhecíamos nada ou pouco. Meus sócios Kleber, Noé e Tito já tinham alguns barcos, mas o primeiro que construímos juntos foi o Jacaré-açu, nosso produto premium. O desenvolvimento foi intenso. Trabalhar com a mão de obra local utilizando todo o conhecimento que tenho de engenharia para fazer algo que jurava que nunca iria ter: um barco.
Quer dizer que foi um golpe do destino acabar como dono de uma frota de barcos na selva amazônica?
[Risos]. Sim, eu sempre disse que nunca teria barco ou restaurante. Hoje dois dos meus projetos na Amazônia giram em torno das expedições pelo rio e da gastronomia local. Na bacia do rio Negro, temos duas embarcações operando pela Katerre, e na bacia do Tapajós-Arapiuns, temos outras duas, operadas via Turismo Consciente. Os restaurantes são o Caxiri, em Manaus, o Flutuante Flor do Luar, em Novo Airão, e o Camu Camu, no Mirante do Gavião.
“Tive que aprender sobre materiais corretos para aquele solo, aquele clima, tudo foi um desafio”
Você andou bem ocupado com o Caxiri no último ano, quais são os planos para o restaurante?
Sim. Com o fechamento temporário dos empreendimentos, a equipe, em especial minha sócia Debora Shornik, uma pessoa especial com imensa sensibilidade, se dedicou incansavelmente ao projeto de transformação do jardim do Mirante do Gavião em uma floresta comestível. Como o Caxiri é um vetor de entendimento da Amazônia, é importante introduzir o máximo de ingredientes locais em sua gastronomia para contribuir com a transformação do viajante que visita a região. A gente acredita no conhecimento local e no poder da ancestralidade. As relações com os alimentos, a floresta e as comunidades da região se reforçam a partir daí.
As expedições da Katerre também têm esse propósito?
Quando reduzimos a distância dos produtos e da navegação, para adequar o tempo das expedições, criamos algumas programações para desenvolver e aumentar as relações com as comunidades e garantir que fosse viável. Apesar das opções mais exóticas do cardápio, conseguimos adaptar produtos de qualidade, muito autênticos, para quem não tem tanto tempo para navegar. Mora muita gente na Floresta Amazônica. É preciso entender a realidade deles para pensar maneiras sustentáveis na relação do homem com a floresta. Tanto no Turismo Consciente quanto na Katerre, fazemos programas de base comunitária. Participamos ativamente nas comunidades. Valorizamos o conhecimento local e seus moradores.
Mirante do Gavião
Qual é a expedição mais longa que vocês fazem na Amazônia?
Algumas chegam a durar mais de vinte dias. Temos conhecimento para mostrar algo diferente todo dia e comemoramos quando precisamos utilizar esse conhecimento. A grande maioria das pessoas navega uma média de cinco dias pela região do Jaú ou das Anavilhanas. É preciso lembrar que 90% do turismo no Amazonas é feito em Manaus, na região em torno do Novo Airão, que concentra os hotéis. Quando alguém está hospedado no Mirante do Gavião, consegue visitar comunidades a uma curta distância. Em uma expedição podemos seguir rio acima, viajar até setecentos quilômetros, parando quantas vezes onde quisermos.
E o público das expedições?
As expedições mais longas são procuradas principalmente por europeus e americanos. Com a pandemia, tivemos boas surpresas. Muitas famílias brasileiras solicitaram viagens mais longas, com o fretamento dos barcos.
O projeto do Mirante do Gavião é das coisas mais bonitas que temos na hotelaria brasileira. Como surgiu o hotel?
Fico feliz em ouvir isso porque foi um dos projetos mais desafiadores da minha vida. Aliás, é por isso que sou apaixonado pelos projetos na Amazônia, todos exigem de mim um conhecimento que não tenho. Nos dois anos de construção do Mirante, tive que aprender sobre os materiais corretos para aquele solo, aquele clima, tudo foi um desafio. Pensávamos em montar uma estrutura que nos permitisse abastecer e subir o rio em direção aos lugares menos conhecidos. Era para ser uma base de apoio dos barcos. Como nosso DNA eram as expedições, nunca imaginamos ter um hotel. A experiência do visitante era muito árida, descer e terminar a viagem em Novo Airão. Não tinha uma estrutura com um bar legal ou um bom restaurante. Aí resolvemos colocar uma piscina, depois vieram os quartos. Quando vimos, tínhamos um hotel.
“Tornar a Amazônia visceralmente brasileira. Essa é a comunicação que está nos faltando”
Que desde a inauguração fez enorme sucesso…
Foram necessários muitos ajustes porque não entendíamos que seria um hotel. Por exemplo, achávamos que a mesma cozinheira do barco, trabalharia lá. A procura pelo hotel nos surpreendeu e fomos obrigados a rever todo o conceito. A filosofia e o princípio são os mesmos da Katerre. Fazemos a transposição dos clientes para a realidade, sem filtros, do que acontece na região.
E há alguma nova expedição planejada?
Preparamos uma expedição que é a primeira 100% homologada pela Funai, em áreas indígenas. O trabalho foi finalizado em 2020. Sempre houve expedições por esses lugares, mas nunca homologadas pela Funai. A grade da programação foi desenvolvida em conjunto com os indígenas. O Instituto Sócio-Ambiental contratou uma ONG, a Garupa, para o desenvolvimento do turismo de base comunitária indígena em Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira.
E como enxerga os desafios para o turismo na Amazônia?
Temos que avançar na forma como nos comunicamos com a floresta. Recentemente, escutei o João Moreira Salles dizendo que falta ao brasileiro o orgulho de ser amazônico e, para consertar isso, o caminho seria o envio de todas as formas de arte: pintura, música, cinema e teatro do resto do Brasil para se impregnar de Amazônia, e assim fazer a região correr por dentro de nós, do mesmo modo que os Alpes representam a Suíça, ou a Patagônia a Argentina. Tornar a Amazônia visceralmente brasileira. Essas é a comunicação que está nos faltando.
Fale um pouco sobre a Fundação Almerinda Malaquias.
Como disse, acho que gosto tanto da Amazônia porque lá sou forçado em mexer em ferramentas que não estou acostumado ou a pensar em coisas que nunca precisei pensar. A Fundação Almerinda Malaquias me desafia a refletir sobre a educação como trabalho. Entendo pouco, não sou um pedagogo, não entendo das técnicas educacionais, mas lido com um problema de educação o tempo inteiro. No momento, estamos trabalhando com uma equipe de vinte educadores na formatação de um projeto para entender o funcionamento de todas as escolas de Novo Airão porque percebemos que é impossível trabalhar só com uma escola. Entendemos que precisamos atuar em todas as 25 escolas daquela região, senão gente não vai mudar nada.
Já pensou em encarar um cargo público?
Acredito que exista muito espaço de trabalho no privado auxiliando o público. É o que fazemos na fundação. A gente tem a parceria com a prefeitura, que fornece alguns subsídios, e 100% dos alunos vêm do processo escolar. É importante trabalhar em conjunto porque só assim é possível alterar alguns procedimentos que não funcionam. Neste projeto, entendi que não preciso fazer parte do governo. Há seis anos seguimos com a mesma filosofia. Já tivemos mudança de prefeito, mas as políticas de investimento na educação que defendemos foram mantidas. Quando estou em campo atuando com a administração pública, não estou como empresário. Estou como uma ONG.
A sua disciplina japonesa, somada à educação alemã, ajuda na hora de tocar todos os projetos?
Acabo criando rotinas, principalmente quando estou na Amazônia. Se estou em Manaus, passo a manhã no Caxiri e a tarde na Casa Teatro. Quando estou em Novo Airão, de manhã estou no Mirante e à tarde na Fundação Almerinda Malaquias. Faço um agendamento de períodos e pré-organizo as reuniões necessárias por lá. Mas estou sempre livre para atender quem precisa de mim. Minha filosofia é que a gente trabalha não para ter só alegrias, mas para resolver problemas. Se algo está dando certo, não me intrometo. Se não me ligam, não tem problema, estão fazendo o que foi combinado. Quando me procuram é para resolver problemas. É assim no Caxiri, no Mirante ou mesmo na construtora que continua funcionando quando não estou.
E qual sua noção de felicidade?
Eu sou feliz trabalhando. Quase o dia inteiro estou fazendo algo relacionado a uma das empresas e é tudo de uma forma leve. Entrei num processo de equilíbrio que, para mim, define a felicidade. Depois de um tempo dentro de um projeto, chego à conclusão de que há pequenas conquistas em todas as etapas. Os percalços vencidos no caminho geram picos de felicidade e de tristeza, mas é o processo que define a felicidade. Depois de ter trabalhado um, dois, cinco anos em algo, se ao final tudo aquilo trouxe realização, significa que a gente foi feliz. Trabalho a felicidade a longo prazo.
Você sente o impacto dessa filosofia nos outros?
Lá no rio Jauaperi, o viajante tem a chance de nos ver coletando ovos de tartarugas em praias de sete comunidades que apoiamos. É bonito, conhecemos as crianças que trabalham lá, pode-se conversar com os pais, ver de perto as mudanças que trouxemos. O Mirante e a Katerre começaram uma ação que financia, a juro zero, projetos que envolvem a melhoria das condições de moradia como a compra de terrenos, a construção de novas casas e reformas de imóveis já existentes. Eu tenho prazer em contribuir como engenheiro em alguns projetos. Depois de cinco anos, vinte pessoas têm casas mais bem construídas. Temos gente muito feliz, é muito bonitinho. Gente feliz e querida em todos os times. Uma grande família.