Por Erik Sadao, de Amsterdã
Na abertura de “O Triângulo da Tristeza”, aspirantes a modelo são desafiados a performar poses sisudas e alegres para estrelar campanhas de grifes de luxo e de fast fashion. A cara de poucos amigos, com olhar distante, segundo os atores em cena, remete a Balenciaga, enquanto a alegria e os sorrisos só cabem em campanhas de marcas como a H&M.
Ao visitar a enorme retrospectiva que celebra o legado de Frans Hals, um dos maiores pintores da chamada Era de Ouro Holandesa, em cartaz no Rijksmuseum, em Amsterdam até 9 de junho de 2024, não pude evitar uma analogia com o filme do sueco Ruben Östlund.
Na primeira metade do século 17, a nova burguesia holandesa enxergava vulgaridade nos sorrisos presentes nos retratos. Estas poses eram reservadas apenas a atores, palhaços e a meretrizes. Era comum expor em prostíbulos de Amsterdam, quadros com senhoras mostrando os dentes para enfatizar a erotização de algo proibido para a elite.
Se Rembrandt ficou conhecido por levar o chiaroscuro (variações gradativas entre luz e sombra) criado por Caravaggio, a patamares jamais superados, e Vermeer pelo domínio milimétrico da luz e dos detalhes, a mostra do Rijksmuseum não deixa dúvidas de que Frans Hals foi um dos maiores mestres dos retratos que já existiu.
Diferente da maioria dos pares ultrarrealistas, Hals destacou-se, principalmente, pelas pinceladas soltas, criando telas preenchidas por emoção e movimento, estilo que o colocou como expoente da arte moderna da época. Como o mercado dos séculos seguintes continuou a valorizar a pintura realista, com mestres como Jacques-Louis David, as obras de Hals, e de outros pintores do barroco holandês como Rembrandt e Vermeer foram esquecidas até o século 19, quando historiadores e artistas como Van Gogh, Monet e seus pares impressionistas passaram a cultuá-los.
Capítulo próprio
Frans Hals nasceu na Antuérpia, entre os anos 1580 e 1584, e sua família, assim como muitas da época, migrou rumo ao norte por razões religiosas e econômicas, se estabelecendo na próspera Haarlem. Pouco se sabe sobre sua formação, mas quando se tornou pintor, já havia na região do pequeno enclave dos Países Baixos, um aquecido mercado de pintura de gênero.
Naturezas mortas e, principalmente, os retratos livres do dogma católico, eram produzidos em grande quantidade, o que deu a região um capítulo só seu na história da arte. Tudo graças à poderosa classe burguesa de cidades como Amsterdam, Delft e Haarlem, ávida por preencher suas casas-palácio com molduras assinadas pelos novos pintores.
Frans Hals entrou em um mercado muito bem estabelecido e desafiou o gosto da nova elite, até então retratada de maneira austera, com poses que remetiam a modelos renascentistas, ao criar retratos que mais se aproximam da fotografia atual, captando a emoção delicada do momento.
O retrato na história da arte sempre foi associado às comemorações. Seja uma união, ou o registro do apogeu de prosperidade de uma família, este tipo de arte evoluiu mimeticamente a medida em que pintores tentavam captar a essência subjetiva de seus retratados. Diferente das obras que exigiam enorme imaginação dos pintores, como a interpretação de passagens clássicas e bíblicas, os retratos não eram considerados o ponto alto das obras da época.
Nas mãos de um grande pintor, os retratos se tornaram verdadeiras obras primas. A capacidade de Hals de caracterizar seus retratados de maneira tão singela, com menos profundidade psicológica como Rembrandt, faz com que nos sintamos próximos dos personagens. Ao ficar cara a cara com as três telas pintadas para seu amigo, o mercador de madeira do Báltico, Isaac Abraham Massa, é quase impossível não reagir a sua expressão. Massa foi o primeiro a escrever relatos sobre a Rússia na Europa e carrega uma aura de viajante intrépido no olhar, que nos desperta a vontade de indagá-lo sobre suas experiências no extremo norte do velho mundo.
Assista a um vídeo sobre a exposição de Frans Hals no Rijksmuseum:
Simplicidade inspiradora
Um dos maiores entusiastas do conterrâneo, Van Gogh dizia que “Hals pintou nada mais que retratos, nada, nada, nada mais que retratos. Mas são retratos que valem tanto quanto o paraíso de Dante, e todos os Rafaels e todos os Michelangelos e até o que criaram os gregos.”
E consigo entender Van Gogh. O foco generoso de Hals com respeito a todos seus retratados, inclusive os anônimos, é um registro da já igualitária sociedade holandesa da época, com uma hierarquia diferente do mundo católico, onde mulheres já ocupavam posições de destaque, cursando universidades e liderando negócios. E há muitos retratos de senhoras anônimas e membros conhecidos daquela sociedade como confirmação da igualdade.
Na sala dedicada a algumas enormes pinturas de grupo, outra marca do século 17 holandês, fica fácil perceber a marca do artista em relação às dimensões e ao movimento, imortalizados por Rembrandt. Diferente do par, Hals era adepto do estilo prima-pura, lançando camadas de tinta na tela sem realizar muitos desenhos prévios, com uma predileção por luz e claridade, séculos antes da invenção da fotografia, endossa ainda mais a mítica de seu legado, celebrado pelos impressionistas.
A famosa Malle Babbe, personagem folclórica conhecida como a Bruxa Maluca de Haarlem, é um exemplo disso. Trata-se de uma garçonete popular na cidade que provavelmente trabalhava em uma das ricas tavernas frequentadas pela Guarda Cívica da cidade, a qual Hals fazia parte. Com uma caneca de cerveja na mão e uma coruja pousada em seu ombro, poderia ter sido exposta no histórico Salão dos Recusados (Salon des Refusés) de Paris, na virada do século 19, ao lado dos pais da arte moderna.
Contemplação recíproca
Há um ponto simbólico em todos os retratos. Os personagens não estão apenas nos observando. Eles observam, também, o pintor, uma imagem que nunca teremos. Outra distinção entre Hals e Rembrandt é que diferente do pintor de Leiden, inventor da selfie, ele não se autorretratou. A imagem real do pintor desapareceu com sua morte. Ele estava tão envolvido com seus personagens que nos deixou somente os sorrisos de mercadores e anônimos imortalizados em suas telas como testemunha de sua existência.
Ao se enxergar a sutileza da humanidade à sua volta, Hals criou um legado que nos permite evoluir e a enxergar a beleza na alegria de momentos singelos, questionando a maquiagem por trás de poses sisudas e forçadas que, até hoje, inundam nosso repertório de imagens em campanhas de moda ou perfis do Instagram. E como questionado por Van Gogh, Monet e cia., também, me pergunto: é ali na Balenciaga que mora a beleza?
FRANS HALS
Rijksmuseum – Museumstraat 1, Amsterdã
Diariamente, das 9h às 17h
Em cartaz até 9 de junho de 2024