Há várias maneiras de viajar pelo mundo. Entre elas, deixar a paisagem desfilar pela janela de um trem; de carro, com as janelas abertas, para sentir o cheiro da grama; espremido na poltrona de alguma fileira do avião; balançando suavemente sobre o deck de um veleiro; de carona na boleia de um caminhão ou até pisando na poeira de algum caminho com a mochila nas costas. É só escolher sua opção, abrir a porta e ir embora.
Mas tem outro jeito de rodar o mundo sem precisar sair de casa, sem ter de se mexer: basta estar deitado em um sofá, lendo, com um livro de viagens nas mãos – aí não tem tempo ruim nem atraso de voos. A única coisa necessária, porém, é saber escolher o livro certo para cada destino.
Aqui estão algumas das viagens que já fiz, sem sair do lugar, graças a autores (verdadeiras figuras, às vezes mais fascinantes do que os lugares visitados) que, com suas inquietudes, curiosidade e coragem, me abriram portas para universos deslumbrantes. Se, de acordo com os versos de T.S. Eliot, “é a jornada, e não o destino, o que importa”, é bom lembrar que é preciso escolher o destino com cuidado para que possamos fazer viagens que valham a pena.
Se William Langewiesche decidiu cruzar o deserto do Saara, Jeffrey Tayler achou que seria uma boa ideia dar um passeio pelo segundo maior rio da África, o Congo.
O americano Tayler, depois de ter sido parte do Peace Corps durante alguns anos, no Marrocos, na Polônia e no Uzbequistão, morava em Moscou e trabalhava como sócio de uma firma que prestava serviços de guarda-costa a executivos americanos que visitavam o país. Frustrado, com um livro pronto que ninguém queria publicar, ele precisava fazer alguma coisa diferente para chacoalhar o marasmo de sua vida. Comprou um monte de mapas do Rio Congo e planejou sua aventura.
Saindo de Kinshasa, a capital do Zaire (hoje República Democrática do Congo), Tayler foi subindo o rio em barcos de passageiros até Kisangani, que fica a 1.736 km de distância – nem mais nem menos. Quando chegou lá, decidiu fazer o caminho de volta. Só que de canoa! Este era seu objetivo desde o começo: durante os longos dias da ascensão no rio, queria entender a vida, as pessoas e os lugares para poder voltar em uma canoa feita à mão.
Acontece que, na metade de sua viagem de volta, seu guia ficou extremamente doente. Nesse momento, Tayler decidiu encerrar a jornada. A decisão foi tomada a partir desta percepção: “Me senti picado pelo meu fracasso e, tentando negar o que mais tarde viria a ser óbvio: que tinha explorado o Zaire como um parque de diversões para resolver meus próprios dilemas existenciais de menino rico”.
A leitura do trajeto até a desistência é envolvente, e o conselho de Tayler para escrever uma boa narrativa de viagem é: “Conheça o lugar sobre o qual você se propõe a escrever, ou saiba o que deseja pesquisar lá antes de ir. Você pode aprender coisas novas ao longo do caminho, mas deve começar com um plano e ser capaz de oferecer uma perspectiva de quem está por dentro”.
Graham Greene achava que Norman Lewis era “um dos melhores escritores, não de uma década em particular, mas do nosso século”. Lewis, além de ficção e autobiografia, publicou 20 livros de viagem. Ele estava interessado em observar e conhecer as populações que viviam na periferia do século XX.
A Voyage by Dhow, um dos seus últimos trabalhos publicados, é uma coleção de narrativas dos lugares mais díspares: a bordo de um pequeno barco a vela na costa da Somália, nas selvas da América do Sul, pelas ruas de Nápoles durante a Segunda Guerra Mundial e numa viagem ao Iêmen, além de uma visita-cortesia do Sindicato dos Escritores da desaparecida URSS às estepes russas.
Para onde Lewis vai, ele sempre traz de volta um relato sobre universos onde o tédio acaba sendo interessante e o que poderia ser exótico se torna familiar.
Ella K. Maillart nasceu em Genebra, em 1903. Velejadora e esquiadora, fez parte, como única mulher, da equipe suíça que participou dos Jogos Olímpicos de 1924 e 1930. A disposição de atleta e o talento de jornalista fizeram com que ela circulasse por lugares impensáveis naquela época. Nos anos 1930, ela estudou cinema na Rússia, viajou pelo Turquistão, foi até a Manchúria (de onde voltou, cruzando a Ásia, em companhia de… Peter Fleming!), passando por Pequim, Kashmir e Tibete, até chegar a Nova Délhi.
Em The Cruel Way, ela descreve a viagem que fez desde Genebra, dirigindo um Ford zero-quilômetro, até Istambul, e depois passando por Teerã até chegar a Cabul, cruzando o norte do Afeganistão – o que, mais tarde, nos anos 1970, acabaria sendo a trilha dos hippies em direção à Índia.
A viagem de Maillart foi feita em companhia de sua amiga Annemarie Schwarzenbach, uma escritora, fotógrafa e jornalista (suíça também, além de glamourosa e andrógina), com a vontade de se aventurar pelo mundo para fugir do seu próprio entorno sufocante, e de uma depressão. As duas colocam o pé na estrada com uma mistura de entusiasmo e ousadia, sem medo algum, enfrentando situações perigosas de maneira quase ingênua, mas com absoluto sucesso1. Como disse Maillart: “Escrevo com os olhos do fotógrafo. Com olhos que adoram ver. Ver esse incrível mistério que é a vida”.
A chegada delas a Cabul coincidiu com o começo da Segunda Guerra Mundial e as duas amigas se separaram. Maillart seguiu em frente, até chegar a Madras, no sul da Índia, onde ficou até o fim da guerra, meditando e escrevendo. Schwarzenbach voltou para a Europa, onde morreu três anos depois, em um acidente de bicicleta.As fotos de Maillart que aparecem nas páginas do livro são deslumbrantes.
William Langewiesche é jornalista, colaborador do New York Times. Já foi piloto de avião (uma vez piloto, piloto para sempre), correspondente do Atlantic Monthly e da Vanity Fair. Depois dos ataques de 11 de setembro às Torres Gêmeas, em Nova York, ele foi o único jornalista a ter acesso irrestrito ao World Trade Center. O resultado foi uma intensa reportagem, que ocupou por inteiro quatro edições seguidas do Atlantic Monthly.
Antes de tudo isso, quando escrevia para revistas diversas e se sustentava pilotando aviões pelos quatro cantos do mundo, Langewiesche – em um estilo que parece o cruzamento de Paul Bowles com Bruce Chatwin – contou seu périplo através do Saara, saindo de Dakar até chegar a Algiers, passando por lugares como Bamako, Mopti, Timbuktu, Niamey, Agadez, Tammasaret e Ourgala. Uma viagem que hoje em dia seria impossível devido à situação política da região – que já era difícil naquela altura.
Langewiesche viaja de olhos abertos e atento a todos os assuntos: à história dos tuaregues, à maneira de as dunas se formarem e se movimentarem, ao sabor do vento, aos contrabandistas, que cruzam com ele em diferentes pontos do caminho. Reportagem, antropologia, detalhes, pessoas, está tudo lá.
A Etiópia é um dos mais antigos países do mundo. O único na África que nunca foi colônia (sofreu com os anos de ocupação italiana, durante a Segunda Guerra Mundial). A religião é a ortodoxa copta. Ao norte do país, no século XII, o rei Lalibela se proclamou herdeiro da dinastia salomônica, saída diretamente da rainha Sabá, e fundou uma cidade com seu nome, com 11 igrejas esculpidas na rocha. Foi justamente na Etiópia que foi encontrada Lucy, a primeira de nossos antepassados. Foi também nesse país, na cidade de Harare, que Arthur Rimbaud, depois de ter escrito os mais belos poemas simbolistas, chegou em 1881, para começar uma carreira de comerciante, sempre à procura de novos horizontes. O negócio consistia na venda de “(…) peles, café, marfim, ouro, perfumes, incenso, almíscar…”.
Mas ele lamenta, sempre inquieto: “Não encontrei o que esperava (…) pretendo encontrar algo melhor daqui a pouco”. As cartas que Rimbaud envia a seus familiares na França são o testemunho de alguém que perdeu seu lugar no mundo. É fascinante acompanhar como um gênio como ele pode estar sempre perdido em projetos irreais, mergulhado na tristeza e na solidão de quem apenas queria ter uma família burguesa.
Curzio Malaparte é uma figura fundamental da literatura italiana. Jornalista, ele se indispôs com Mussolini pelo teor de seus escritos e, depois de ter passado algum tempo confinado nas Ilhas Lipari, Malaparte conseguiu autorização para viajar até a Etiópia2 (a Abissínia, para os italianos da época) como correspondente do jornal Il Corriere della Sera. Percorreu 6 mil quilômetros pelo país, grande parte no lombo de uma mula. As descrições de Malaparte – “A noite estava fria; lisa e fria como um objeto de aço cromado (…) A risada queixosa das hienas e o latido dos chacais foi sumindo pouco a pouco na neblina matinal” – são precisas e envolventes.
Ian Fleming, o criador de James Bond, não era o gênio da família – apesar de ter descoberto uma mina de ouro, com seu agente especial 007. Na família Fleming, Peter, o irmão mais velho, educado em Eton e Oxford, foi o viajante, o aventureiro, o jornalista, o soldado e o escritor perfeito. A primeira das aventuras dele foi em 1932, quando respondeu a um anúncio do jornal The Times, de Londres3, que procurava pessoas para se juntar a uma expedição que sairia à procura dos restos do geógrafo inglês Percy Fawcet, desaparecido na Amazônia4.
O humor de Fleming é tipicamente inglês: “Depois de ter cruzado o Atlântico pedalando”, diz ele, se referindo ao fato de que ficou durante os 15 dias da travessia pedalando todos os dias uma bicicleta no deck do navio que o fez desembarcar no Brasil. Logo depois de ter chegado em terras tropicais, ele se desentende com o líder da expedição e decide partir, juntamente com um amigo de escola, que também formava parte do grupo, por sua própria conta e risco. Não acharam nem indícios nem os restos de Percy Fawcet, mas a narrativa de Fleming é absolutamente irreverente.
Fleming por ele mesmo: “Sou uma daquelas pessoas que prosperam em um clima de incerteza. Também não temos qualidades de heróis. (…) Se nos arriscamos, é por pura preguiça: abandonamo-nos nas mãos da providência. Em qualquer situação, quanto mais confiamos nele, menos somos forçados a colocar o nosso. Dada a falta de eficiência, visão e sentido de responsabilidade que nos caracteriza, preferimos deixar que a sorte decida por nós”. Ou seja, a maneira exata de não encarar uma aventura.
O livro foi um sucesso de vendas na Inglaterra – e depois no mundo – e deu a largada para uma série de aventuras de Fleming pela Ásia, saindo de Moscou e chegando até Pequim.
1. O escritor francês Paul Morand descreveu Maillart como “vestida com botas de pele de cordeiro, sua pele queimada pelo ar da montanha e pelos ventos do deserto, explorando regiões inacessíveis da terra na companhia de chineses, tibetanos, russos e ingleses, cujas meias ela conserta, cujas feridas ela cura e com quem ela dorme com toda a inocência sob as estrelas…”. Já Schwarzenbach foi descrita pela fotógrafa alemã Marianne Breslauer – com quem ela fez uma viagem pelos Pirineus espanhóis, em 1933 – como: “Ela não era nem homem nem mulher, mas um anjo, um arcanjo”.
2. Antes de ir para a Etiópia, Malaparte teve tempo de construir, em Capri, a deslumbrante Villa Malaparte, no Cabo Massoulo. A direção que ele deu para o arquiteto, Adalberto Libera, foi apenas: “Faça uma casa como eu”. A casa serviu como cenário a Le Mépris, o clássico filme da nouvelle vague dirigido por Jean-Luc Godard.
3. O texto do anúncio: “Expedição exploratória e esportiva, sob orientação experiente, saindo da Inglaterra em junho para explorar os rios do Brasil central e, se possível, averiguar o destino do coronel Percy Fawcett; caça abundante, grande e pequena; pesca excepcional; espaço para mais duas pessoas; boas referências são esperadas e serão dadas”.
4. Percy Fawcet foi um oficial de artilharia, cartógrafo, geógrafo, arqueólogo e explorador inglês. Ele desapareceu na Floresta Amazônica – com seu filho e dois amigos – procurando uma cidade perdida no Mato Grosso. Ele tinha encontrado alguns papéis na Biblioteca Nacional do Brasil, o Manuscrito 512, em que o bandeirante português João da Silva Guimarães teria relatado o descobrimento, em 1753, das ruínas de uma cidade com estátuas e hieróglifos. A história de Fawcet foi a inspiração de Steven Spielberg para o personagem de Indiana Jones.
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