Amanhece no Nepal e desperto ao sabor de um revigorante nepalese masala tea na varanda do restaurante Mayur, em Bhaktapur, uma das três cidades dos antigos reinos do Vale de Katmandu, juntamente com a capital, Katmandu, e Patan. A cidade está encravada no centro cultural e geográfico do Nepal. O vale onde Bhaktapur está localizada é Patrimônio Mundial da Unesco. Suas praças, as Durbar, são o epicentro da vida e história nepalesas.
O Nepal é um país espremido por duas potências, a China e a Índia, e parte da Cordilheira do Himalaia está em seu território. Das dez maiores montanhas do mundo, oito estão ali.
O Vale de Katmandu é uma meca das tradições tântricas. Repleto de lugares sagrados, é visto como a imagem do lótus da suprema realização que emerge do cotidiano samsárico e do emaranhado sistema político nepalês. Porém a profundidade dessas raízes vai além de cenas cotidianas congeladas no tempo: ela revela uma memória de reinados que serviram como pano de fundo de momentos históricos conhecidos pela vida de seres realizados, de Padmasambhava (século VIII) a Gorakhnath (século XVII).
O jantar macabro e o novo Nepal
Meus pensamentos borbulham com o tonificante chá masala. Leio a história da última monarquia nepalesa no jornal local. A dinastia Shah, que encerra o ciclo monárquico moderno do Nepal, foi criada em 1769, dando início a uma era em que os reis são considerados nada mais nada menos que encarnações do deus Vishnu. Em 2008, o Nepal aboliu a monarquia e se firmou como uma república parlamentarista, após um episódio violento, que deixou o povo nepalês e o mundo estarrecidos e derramou sangue sobre essa derradeira realeza.
No dia 1 de junho de 2001, o príncipe herdeiro Dipendra, em um acesso de fúria e delírio, dizimou a família real num jantar de confraternização. Na carnificina, morreram o venerado rei Birendra, a rainha Aishwarya, dois irmãos, tios e tias. O Nepal ficou em estado de choque. Com o país no caos, foi coroado Gyanendra, irmão de Birendra, como o 11º rei da dinastia Shah. Muitas versões desencontradas foram investigadas sobre o que aconteceu nos bastidores do jantar macabro. Rumores de conspiração reverberam até hoje. Os astrólogos e oráculos da corte ficaram em péssima situação por não terem detectado ou previsto o episódio fatídico.
Nas ruas, longe dos bastidores da política, o povo nepalês demonstra, com o fim da monarquia, a esperança de uma reviravolta na qualidade de vida e, especialmente, na promessa de paz entre os nepaleses.
Túnel do tempo
Depois de terminar o chá, saio caminhando pela Bhaktapur Durbar (a entrada custa 1.500 rúpias, aproximadamente 10 dólares). O trânsito de veículos é proibido e o passeio é um espetáculo para os sentidos: essa magnética praça medieval é cercada por uma arquitetura fascinante, onde contemplamos os trabalhos dos artistas e artesãos nepaleses (indígenas do Vale de Katmandu) ao longo dos séculos. São templos, pagodas, tanques de água, palácios, portas esculpidas e muitas esculturas de pedra.
Dali se pode vislumbrar um monumental palácio de 55 janelas. Logo na sequência, o impactante templo retangular de Dattatreya, juntamente com a Pagoda de Nyatapola, nos deixa em estado de real encantamento, aguçando nossos sentidos como numa viagem em um túnel do tempo. Vale a pena conhecer também a “praça de cerâmica”, onde muitos artesãos vendem potes e vasos feitos em suas olarias.
Explorar o Vale
de Katmandu é
reviver uma história
repleta de crenças
e misticismos
Vale dizer que estive no Nepal em muitas aventuras antes do terremoto, em 2015, um acontecimento avassalador, que deixou o vale em escombros, com perdas irreparáveis. Porém a mobilização da população, de arqueólogos e demais autoridades possibilitou a restauração de muitas regiões devastadas.
Pluralidade original
De volta ao impecável hotel Aloft, no distrito de Thamel, me sinto em uma verdadeira Torre de Babel em Katmandu. O bairro oferece um emaranhado de restaurantes, lojas, cafés, antiquários, hotéis, livrarias e uma feira livre, dia e noite, que mais parece um bazar. Esse inquieto músculo cardíaco é povoado por um turbilhão de raças de todos os cantos do mundo: mochileiros, artistas, estudantes de budismo e aventureiros ávidos por montanhismo e esportes de ação.
Com o apetite de um Yeti (o Abominável Homem das Neves), encontro no tradicional restaurante Baithak deliciosos pratos da culinária hindu-nepalesa. Com energias renovadas, a bordo de um riquixá, sigo pelas vielas até a Durbar Square de Katmandu. No agitado centro de Hanuman Dokha, a estátua de 3,50 m de Kal Bhairav-Mahakala, o deus do tempo e da justiça, magnetiza como um ímã qualquer criatura que por ela passa, com seus seis braços e sua guirlanda de cabeças ao redor do pescoço. A estátua foi esculpida em um único bloco de pedra e tem mais de mil anos. O santuário é um vórtex de devoção ao protetor de Katmandu.
No dia seguinte, o plano era conhecer Parphing, que fica a 25 km de Katmandu: é um pequeno vilarejo no extremo sul do Vale de Katmandu. Sajan, meu amigo newari, há décadas é o mestre de cerimônias dessa aventura. A brisa do Himalaia e o cenário das montanhas, logo pela manhã, inspiraram nossa visita ao templo de Kali e à Caverna de Asura. Na entrada, senti uma vibração, uma força estranha, que emanava de dentro. O local foi onde o guru Rinpoche (Padmasambhava) meditou e se iluminou. Ao abandoná-la, ele começou a propagar seus ensinamentos sobre o budismo vajrayana pelo Tibete, no início do século VIII.
Sob a proteção das deusas
Algumas nepalesas fazem suas orações no interior da caverna. As rochas são escuras, pois velas são acesas 24 horas por dia e imagens do guru Rinpoche se encontram com muitas oferendas, incensos e tecidos. Uma marca impressa da palma de sua mão, logo acima da entrada da caverna, como se a rocha tivesse sido derretida, chama a atenção. Sajan percebeu a minha sintonia e me levou até o alto da colina onde a caverna está localizada para conhecer um antigo templo de Vajrayogini.
Pertinho da Caverna de Asura, fomos visitar o templo de Dakshinkali, que é cercado por uma densa floresta. O local é dedicado à deusa hindu Kali, a reencarnação da deusa Parvati. Kali é uma representação feminina renovadora e seu amor é tão intenso quanto sua ira. Ela protege seus devotos de calamidades e infortúnios. Era uma quarta-feira, e o templo tinha alguns visitantes, todos recebendo bênçãos dos sacerdotes. Às terças-feiras e sábados, o templo de Dakshinkali fervilha: devotos e peregrinos sacrificam animais de pequeno a grande porte. Abatidos ali, eles têm a carne levada pelas famílias para ser cozida e comida em suas residências. Os mais bucólicos fazem seus pratos com temperos à sombra das árvores… Seguimos para Patan, a primeira capital do Nepal, que fica a poucos quilômetros de Parphing. Patan, também chamada de Lalitpur, foi fundada no século III a.C. Cidade de história milenar, ela possui centenas de templos e monumentos budistas com tamanhos e formas diversos e trabalhos artísticos dos mais variados materiais, como metal, pedra e terracota. |
Na manhã seguinte, eu partiria para o complexo de Pashupatinath, o vórtice da religiosidade nepalesa. Pashupatinath fica à margem do Rio Bagmati: um complexo repleto de templos, estátuas, crematórios e santuários, um dos locais mais sagrados para os hindus. Seu guardião e protetor é Pashupatinath, uma das manifestações do deus Shiva. Subimos o morro e passamos por muitos santuários, onde a juventude nepalesa fumava seus pequenos chillums e peregrinos realizavam rituais, derramando leite em lingans, estátuas, e queimavam incensos. No alto, havia alguns alojamentos e barracas. Os discípulos de Gorakhnath são também conhecidos como kanphata-yogis e são fáceis de serem identificados, pois possuem enormes brincos perfurados na cartilagem da orelha. Essa ordem é devota do deus Shiva, o Deus Supremo, e a conexão consiste na união com a divindade mediante a prática da ioga. Eles são conhecidos e respeitados sobretudo por seus poderes mágicos, controle de respiração e alquimia. Muitas lendas e histórias contam as passagens desse personagem, que viveu no século XII e foi o criador da hatha-yoga. |
Fomos recebidos com bênçãos e xícaras de chá e, no ato, nos ofereceram chillums estufados de haxixe. Do grupo de mais dez naths, dois falavam inglês e traduziam as fantásticas histórias da saga dos gurus e iogues ancestrais da tradição dos gorakhnaths. No espaço de duas horas deste mundo controlado pelo tempo e relógio, aprendemos séculos de lendas e histórias dos ancestrais dos naths e ainda sobre as plantas, o tantra, as peregrinações, os minerais e os locais sagrados no Himalaia. Saímos flutuando do local, descendo a ribanceira, onde a multidão explodia à beira do Rio Bagmati em seus ghats (plataformas de pedra), onde muitas cremações de corpos aconteciam. Algumas pessoas se banhavam e uma senhora permanecia estática no meio do fluxo da água. Perguntei para um sadhu o que acontecia. Ele disse que a mulher estava em samadhi, em completo êxtase. Saímos da celebração e voltamos para o hotel em sintonia com as montanhas do Himalaia e suas tradições culturais e mágicas. |
O professor de filosofia Guilherme Romano sintetiza: “O Nepal é peculiar. As vertentes mais místicas do hinduísmo tântrico e do budismo tântrico se mesclam, dialogam e produzem juntas uma gama de praticantes, de sábios e mestres sem igual. Esse perfume espiritual, essa força de transformação está ali, no Nepal, de forma crua, avassaladora e contundente. Pashupatinath é um desses lugares”.
Clique aqui para ler a matéria na íntegra na edição 11 da Revista UNQUIET.