Buenos Aires tem mais livrarias do que o Brasil inteiro. Pode parecer mais uma provocação dos hermanos, mas não é. A cidade, eleita em 2011 como a Capital Mundial do Livro pela Unesco, foi a 11ª a receber a honraria. Um estudo publicado em 2014 pelo World Cities Culture Forum comprovou: Buenos Aires é mesmo a cidade com o maior número de livrarias por habitante no planeta. São 25 para cada 10 mil pessoas (São Paulo tem 3,5), mas na região central a proporção pode chegar a uma livraria para cada 250 habitantes!
Monumento nacional: El Ateneo Grand Splendid
Age before beauty. Vou subverter a etiqueta anglófila dos portenhos iniciando este roteiro não pela livraria mais antiga de Buenos Aires, mas pela mais bonita, e de uma beleza avassaladora: El Ateneo Grand Splendid, instalada dentro de uma sala de espetáculos monumental. Imagine o cenário majestoso do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com sua ampla plateia, seus camarotes, balcões e torrinhas, totalmente tomado por estantes cheias de livros, que se estendem até ao poço da orquestra. Inaugurado em 1919 na Avenida Santa Fé, no Barrio Norte, como um teatro de mil lugares no estilo eclético, o Grand Splendid acolheu o tango de Carlos Gardel, Francisco Canaro e Jorge Firpo, sediou a Rádio Splendid e a gravadora Nacional Odeón e exibiu, a partir de 1929, os primeiros filmes sonoros. Arrendado em 2000 por um grande grupo de livrarias, foi transformado num megaespaço de 2 mil metros quadrados e, já em 2007, vendia mais de 700 mil livros. Cerca de 1 milhão de pessoas visitam o local anualmente.
A clientela tem à sua disposição cadeiras de praia para folhear à vontade livros dos mais variados gêneros e procedências antes de fazer a sua escolha. Nesse ambiente inspirador – com muitos detalhes originais intactos, como as cortinas carmesim do auditório, as peças da iluminação e os adereços arquitetônicos – funciona também um simpático café. Numa pesquisa de 2008, o prestigioso jornal britânico The Guardian classificou a Ateneo Grand Splendid como a segunda melhor livraria do mundo.
Librería de Ávila, a mais antiga
Priorizando agora a idade, vamos falar da Librería de Ávila, aberta em 1785 – pouco depois da Independência dos Estados Unidos e quatro anos antes da Revolução Francesa! Foi no bairro de Montserrat, na esquina das calles Adolfo Alsina e Bolivar, que se vendeu o primeiro livro em Buenos Aires, 237 anos atrás. No estabelecimento do farmacêutico Francisco Salvio Marull encontrava-se de tudo um pouco, remédios, tabaco, periódicos – La Botica era uma espécie de shopping center da época. Ali se vendeu em 1801 o primeiro jornal da cidade, El Telégrafo Mercantil, Rural, Político, Económico e Historiográfico del Río de la Plata. Para “satisfazer as inquietudes bibliófilas” dos habitantes da colônia espanhola, a Botica passou a importar livros da Europa e do Alto Peru. Seria um enigma borgiano especular qual foi exatamente o primeiro livro comprado ali, mas o velho bricabraque deixou de vender leite e aguardente e se concentrou no ramo livreiro, adotando em 1830 o nome Librería del Colégio por ficar defronte ao Colégio Nacional, a instituição de ensino mais antiga do país, fundada pelos jesuítas. Por suas estantes circularam os presidentes Domingo Facundo Sarmiento e Bartolomé Mitre e escritores como Jorge Luís Borges, Leopoldo Lugones, Ernesto Sábato e Victoria Ocampo.
A demolição do edifício, em 1926, e a construção de um novo em seu lugar provocaram uma ruptura nos negócios da livraria, que fechou em 1980. Em 1993, a antiga Librería del Colégio foi comprada por Miguel Ávila, livreiro desde os 13 anos de idade, que levou mais de um ano para reformá-la, num trabalho quase arqueológico. Orgulhoso do resultado, batizou-a de Librería de Ávila e ele mesmo preside o atendimento, com a ajuda do filho Facundo. É no subsolo que estão os tesouros: livros raros ou esgotados e curiosidades. O forte são os estudos argentinos e latino-americanos sobre arqueologia, antropologia, botânica, indigenismo, história e linguística. Em 2000, o governo declarou a Librería de Ávila um “patrimônio histórico-cultural”.
Café (ou vinho) com leitura
Frequentador cativo do sebo da Igreja de St. Luke’s, em Botafogo, Rio de Janeiro, encontrei lá pouco antes da pandemia uma simpática sacola da Eterna Cadencia, livraria na Calle Honduras, em Palermo. Prometi a mim mesmo que na próxima viagem a Buenos Aires a primeira coisa que farei será visitar essa casa de nome tão inspirador. Fiquei sabendo que, além de uma seleção de livros impecável, e atendimento idem, a Eterna Cadencia tem nos fundos um café-restaurante, onde podemos passar horas descontraídas longe desse insensato mundo e no coração de páginas inesquecíveis.
Também nessa região, batizada mais recentemente de Palermo Soho, fica a Libros del Pasaje, com um catálogo diversificado de literatura argentina, livros de moda e guias de viagem. Ali se organizam regularmente atividades infantis, que visam atrair as crianças desde cedo para o mundo dos livros. Um café acolhedor oferece opções de sanduíches e doces e uma carta de vinhos a preços razoáveis.
Num mercado tão disputado, as livrarias de Buenos Aires vão além dos livros e procuram criar um perfil diferenciado com outros atrativos – cafés, confeitarias, restaurantes, winebars e a própria decoração. Nesse quesito, a Falena Libros oferece um ambiente rústico, com paredes de tijolos aparentes e plantas ornamentais, num dos mais belos pátios de Buenos Aires, em La Chacarita, não muito longe das badaladas ruas do Palermo Soho.
Embora pequena, a seleção de livros é refinada, com o melhor da literatura clássica e contemporânea e títulos de não ficção, arte e design. Ali o cliente pode se sentar num sofá com uma taça de rojo e escolher um livro como se estivesse no aconchego de sua própria biblioteca. A Falena promove vários eventos: palestras, oficinas e ciclos de música ao vivo. No espaço do subsolo, chamado Black Forest, pode-se ouvir um bom jazz (os músicos argentinos não se limitam apenas ao tango). Ali tocaram nos anos 1960 feras como o saudoso saxofonista Gato Barbieri, autor da trilha sonora de O Último Tango em Paris, e o premiado pianista e arranjador Lalo Schiffrin, vivíssimo em seus 90 anos. (Em 2009, ele recebeu um Oscar honorário “em reconhecimento de seu estilo musical único, sua integridade como compositor e suas influentes contribuições para a arte das partituras cinematográficas”.)
Outra livraria nessa mesma região que investe em café e plantas é a Dain Usina Cultural. Com um acervo impressionante de mais de 20 mil exemplares, ela ainda consegue encomendar e entregar em 24 horas qualquer livro disponível em Buenos Aires. Organiza atividades culturais, como lançamentos, cursos, palestras, exposições de arte e ciclos de música e cinema. Seu café-restaurante oferece um cardápio original no agradável terraço, cercado de plantas.
Conexão latina
Também em Palermo, a Librería del Fondo, do grupo mexicano Fondo de Cultura Económica, foi criada em 2016 para reforçar os laços culturais entre México e Argentina e servir como um ponto de encontro para os amantes das ideias, das artes e das letras. Seu vistoso prédio de concreto se impõe na paisagem portenha, sendo o último projeto de Clorindo Testa, mestre da arquitetura brutalista argentina, criador também do edifício da Biblioteca Nacional. São dois andares de livraria, um salão para atividades culturais e uma sala de exposições. O acervo foca a literatura e as ciências sociais, mas há também uma atraente seção de histórias em quadrinhos e outra de livros infantis e ilustrados. O luminoso pátio da Librería del Fondo exibe um mural da artista Isol e, item obrigatório nas livrarias de Buenos Aires, conta com uma filial da cafeteria Lattente, uma das melhores da cidade.
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