Desafios invisíveis para viajantes LGBTQIA+

Embora nenhum país muçulmano reconheça oficialmente a homossexualidade ou disponha de uma cena pública, o turismo LGBTQ+ nesses destinos tem criado uma atmosfera de tolerância tácita — desde que tudo se mantenha na esfera privada

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Até que ponto estamos dispostos a cruzar a linha entre a nossa identidade e o respeito às tradições locais para desbravar culturas fascinantes? São infinitas as nuances da sexualidade, das culturas e das religiões. Em um mundo cada vez mais complexo, mas que discute a vida em textos curtos no X ou em vídeos de um minuto no TikTok, é importante colocar as coisas em contexto.

Da mesma forma que o conjunto da população gay masculina é composta de indivíduos com gostos, estilos e comportamentos completamente distintos (e sem nem entrar no mérito das outras letras da sigla, L, B, T, Q, I, A etc.), nos 50 países com populações formadas por maioria muçulmana, há diferentes níveis de influência do Islã sobre o Estado. 

A vastidão do mundo muçulmano

O mundo muçulmano é vasto. Da costa oeste da África ao leste asiático, de pretos a amarelos, passando por mediterrâneos, dos xiitas aos sunitas, passando pelos ibaditas, são muitas as camadas históricas, culturais, políticas, jurídicas e teológicas. 

Teocracias vs repúblicas seculares

Há países como as Maldivas e a Arábia Saudita, que são estados teocráticos, onde a conversão ao islamismo é obrigatória (ou seja, a cidadania está atrelada à religião) e a prática de qualquer outra fé é proibida, mas… toleram ou têm mostrado disposição de tolerância com comportamentos estrangeiros por causa do dinheiro do turismo. Há também repúblicas seculares, como a Turquia e a Indonésia, que abriga a maior população muçulmana do mundo e onde está Bali, em que as leis civis não são regidas pela lei islâmica, a Sharia.

Aplicação da lei

Para completar, há ainda o fato de o quanto essas leis são realmente aplicadas. Nos países muçulmanos hoje mais radicalizados, onde são terminantemente proibidos o contato e a interação com o sexo oposto fora da família ou do casamento, o sexo entre dois homens — principalmente jovens adultos — costuma ser algo velado, mas corriqueiro. Não foi sempre assim. 

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Rocha do Pombo, em Raouche, em Beirute, Líbano | Foto: iStock

Paradoxos que marcaram a história 

O judaísmo, o cristianismo e o islamismo, as três religiões monoteístas que tiveram origem no mesmo patriarca, Abraão, possuem trechos — no Alcorão e na Torá, que é também o Antigo Testamento da Bíblia — que são interpretados como condenações à prática sexual entre dois homens. Lembrando que, mais de 2 mil anos atrás, não existia a noção de identidade homossexual ou orientação sexual e afetiva entre pessoas do mesmo sexo, que só surgiria a partir do século XIX. O que vale ressaltar, no entanto, é que, historicamente, nem o judaísmo, nem o islamismo perseguiram, condenaram ou mataram tantos homossexuais como o cristianismo. O radicalismo violento atual contra os homossexuais nos países muçulmanos é uma herança da Europa cristã.

Colonialismo e repressão: legado britânico

Desde quando o Império Romano se converteu à Igreja fundada por Jesus Cristo até a Inglaterra vitoriana, passando pelas Inquisições — a medieval e a moderna — e pelo nazismo, com seu Cristianismo Positivo, os homossexuais foram perseguidos, torturados, mortos e até queimados vivos pelo Estado. É impressionante pensar que, na Inglaterra, país do punk, dos Rolling Stones, do David Bowie e do Boy George — sem mencionar ilustres personagens gays passados —, a homossexualidade era crime até 1967, punida com prisão e castração química. 

Foto: iStock
A Mesquita Koutobia, em Marrakesh, Marrocos | Foto: Getty

A criminalização imposta por potências coloniais

O grande paradoxo é que foram justamente os ingleses (e também os franceses no Marrocos), quando eles passam a invadir o mundo no século XIX, que instituem a criminalização da homossexualidade em países muçulmanos, como a Malásia, a Nigéria e o Paquistão. Todos países que, mesmo após a independência, mantêm até hoje em vigor as leis inspiradas na famigerada seção 377 do código penal britânico vitoriano. Com a colonização europeia, passa a ser censurada a milenar literatura homoerótica dos poetas muçulmanos, termina a presença dos garotos de programa — certificados pelo Estado — nos hammans otomanos e, com a incorporação do moralismo ocidental, a Sharia passa a ser aplicada de forma literal e implacável, principalmente contra mulheres e homossexuais.

Gays viajando para os países muçulmanos 

O dilema é grande. O quanto eu preciso deixar de lado minha identidade para conhecer a fascinante história egípcia, perder-me em medinas, souks e casbás em Fez ou em Argel, maravilhar-me com as artes decorativas e os tapetes iranianos e me deliciar com a gastronomia levantina? E ainda: em tempos de ativismo, deveríamos contribuir com a economia de países que perseguem e criminalizam os nossos iguais? 

O sítio arqueológico de Hegra, na Arábi Saudita | Foto: Getty
Barcos no mar Mediterrâneo em Oludeniz, Turquia | Foto: iStock

Há países muçulmanos mais abertos para a diversidade, como o Líbano, cuja capital, Beirute, abriga bares com clientela predominantemente gay e a Helem, a primeira organização de luta pelos direitos LGBTQIA+ do mundo árabe.

Existem também países com leis severas — como Maldivas, Marrocos e Dubai —, que, por causa da enorme presença de estrangeiros (turistas e residentes), recebem bem casais gays desde que não se expresse o afeto em público (a demonstração de afeto entre homens e mulheres também é proibida nesses países).

E aí há lugares como o Egito, cuja polícia promove uma perseguição sistemática, usando aplicativos de encontros da comunidade gay para realizar prisões, com direito a abuso físico, humilhação e exposição pública. Apesar da aplicação das leis não ser sempre severa, há uma insegurança jurídica que definitivamente não nos protege. 

Estratégias e precauções: relatos reais

Na minha experiência, viajando com meu marido para países muçulmanos, e na de amigos e pessoas com as quais conversei para esta matéria — como o CEO da agência de viagens de luxo Explore Travel, Phillipe Takla, que já fez muitas viagens com o seu marido para destinos muçulmanos —, existe um fato que se repete. Quanto maior a “passabilidade” do viajante gay, ou seja, quanto maior sua capacidade de passar despercebido — nas roupas e nos trejeitos — por meio de um comportamento parecido com o de um heterossexual.

E quanto mais parecer que são “dois amigos homens viajando juntos”, menores são as chances de ocorrer algum problema. Isso inclui solicitar uma cama de casal para que dois homens durmam juntos. Você nunca será questionado ou terá qualquer tipo de constrangimento ao longo da viagem. 

Deserto de Dubai ao pôr do sol | Foto: iStock

Existe também outro fator de proteção, que é o privilégio de se hospedar em hotéis de luxo e contar com uma estrutura de serviços — principalmente guias e automóveis com motorista — ao longo da viagem. Em relato de um homem gay que prefere permanecer no anonimato, ao se hospedar com o namorado em um hotel mais simples no interior da Turquia, a camareira fazia questão de, todos os dias, durante a arrumação, separar as camas e colocar uma mesa de cabeceira no meio. 

Discrição é essencial

De resto, todo o cuidado é pouco. Vale evitar usar aplicativos de encontro — até para não ser rastreado — e sair com desconhecidos (usei o Grindr uma vez em Dubai e me lembro de ter teclado com um emirati que queria me pegar de carro em uma avenida próxima ao hotel Armani e me levar para um “encontro” dentro do carro no meio do deserto). E nem pensar em demonstrar qualquer forma de afeto em público. Discrição e respeito aos códigos de conduta locais — mesmo que hostis conosco —, sempre. 

Vale a pena “voltar para o armário”?

O sentimento de viajar para países extremamente conservadores, muçulmanos ou não, é sempre contraditório para nós, viajantes homossexuais. Portanto, vai de cada um avaliar o quão se está disposto a “voltar para o armário” para conhecer um mundo muito diferente do nosso, mas com história e experiências fascinantes.

Matéria publicada na edição 19 da Revista UNQUIET.


Apoio e representatividade LGBTQIA+ no mundo

Organizações globais pela diversidade

Informações históricas e jurídicas

Horizonte sobre o Nilo no Cairo antes do pôr do sol, Egito | Foto: iStock

Relatórios e dados sobre direitos LGBTQIA+

LGBT Rights – Human Rights Watch (conteúdo atualizado e contínuo):
https://www.hrw.org/topic/lgbt-rights hrw.org+6hrw.org+6hrw.org+6

Country Profiles: Sexual Orientation and Gender Identity – Human Rights Watch (perfis por país e leis vigentes):
https://www.hrw.org/video-photos/interactive/2021/04/23/country-profiles-sexual-orientation-and-gender-identity

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