Com uma diversidade de encher os olhos, a Guatemala está localizada no que foi o epicentro da civilização maia. Seus descendentes diretos, os guatemaltecos de hoje, se dividem em 24 grupos étnicos, que falam cerca de 55 línguas indígenas, entre as quais 23 são oficialmente reconhecidas. Apesar do pequeno território, tudo ali é superlativo.
“A Guatemala ocupa o quinto lugar do mundo em biodiversidade: são 14 ecorregiões, 33 vulcões, lagos e praias em dois oceanos, o Pacífico e o Mar do Caribe”
Isso faz do país um lugar de muitos contrastes, belas paisagens e uma enorme variedade de ingredientes naturais.
Após 36 anos de guerra civil, que terminou oficialmente em 1996, a Guatemala entrou em um processo de “cura de suas feridas” com a busca pela identidade perdida, o que envolveu intimamente a gastronomia. De lá para cá, jovens chefs vêm investigando tradições, somando a elas criatividade e dando uma lufada de oxigênio às cozinhas profissionais.
Muitos dos chefs da Guatemala passaram temporadas de estudo e trabalho no exterior e, ao voltar para casa, iniciaram projetos autorais, nos quais somam as técnicas aprendidas fora à rica cultura e aos ingredientes da região. Essa buena onda de chefs levou à sua participação na Latin America’s 50 Best Restaurants.
O interesse pela cultura de povos originários parece ser uma tendência crescente em todo o mundo. A Guatemala, que antes tinha o colonizador europeu como inspiração, agora se rende ao encanto de suas próprias paisagens, à conexão com os antepassados e à força de sua identidade.
Cozinha Guatemalteca: a milpa
Composta de milho, feijão e abóbora, e mais conhecida como “tríade mesoamericana”, a milpa é uma técnica de policultura que alterna cultivos, evitando o desgaste do solo e mantendo a diversidade da alimentação.
A palavra “milpa”, de origem náhuatl, é formada pelos vocábulos milli (“campo”) e ypan (“acima”) e significa “colocar em cima de”. A técnica foi primordial para garantir a alimentação em toda a história da civilização maia.
Ainda hoje, sob a influência da milpa, os pequenos agricultores guatemaltecos procuram cultivar a terra de acordo com as suas necessidades alimentares, intercalando colheitas de chiles, quelites e tomates, entre outras plantas, e semeando ervas medicinais e árvores frutíferas à margem das plantações.
A tríade mesoamericana garante a tortilha de milho (o mesmo que o nosso pão), a proteína do feijão e a versatilidade da abóbora, encontrada em caldos, guisados e sobremesas e, não raramente, assada na brasa e comida ainda fervendo com uma colher. Esses três ingredientes estão presentes na cozinha destes quatro restaurantes premiados, onde os chefs e suas equipes mergulham na ancestralidade e retornam de lá com propostas de experiências gastronômicas únicas e surpreendentes.
Viagem à Guatemala: restaurantes premiados
MERCADO 24
O Mercado 24, do chef Pablo Diaz, oferece uma comida despretensiosa em um ambiente igualmente despretensioso: é tudo simples e delicioso. Os pratos, executados com técnica impecável, são apresentados sem invencionices e sempre sob a sólida filosofia de destacar os ingredientes.
O menu muda de acordo com a safra dos produtos, escolhidos por ele todos os dias no mercado da cidade. Muitas vezes, os pratos são preparados na brasa, mas também há os que são feitos com as técnicas aprendidas durante as viagens ao exterior, como é o caso do atum curado e envelhecido.
Os vegetais da estação, o pescado do dia e os frutos do mar do Mercado24 são famosos. As torradas de peixe cru e camarão, no estilo aguachile, são sensacionais, tanto que deram origem a outro lugar de sucesso, o Dora La Tostadora, onde o menu se concentra nas torradas que nasceram no Mercado24.
Passamos ali uma tarde deliciosa, eu e José Wolff, o amigo e jornalista de gastronomia que me assessora neste artigo. A comida vinha diretamente das brasas, trazida pelo simpático Pablo, que nos descrevia com emoção os encantos de cada prato.
SUBLIME
Assim que entramos, percebemos a atenção dada aos detalhes. O restaurante Sublime, instalado em um elegante bairro da Cidade da Guatemala, conta com vários ambientes, nos quais é possível apreciar obras de importantes artistas centro-americanos, entre eles Carlos Mérida e Ángel Poyón. O Sublime é afiliado à Fundação Rozas-Botrán.
O chef e proprietário, Sergio Díaz, com a colaboração da antropóloga Jocelyn Degollado, desenvolveu um menu degustação que nos leva a um passeio pelas histórias e regiões emblemáticas da Guatemala. Das terras de Cobán (prato da região com peru, ichintal e kakik) às áreas garífunas de Izabal. Das margens do Rio Motagua às áreas urbanas e populares, como La Terminal (o maior mercado da cidade).
Além da comida excepcional, o restaurante tem uma extensa carta de vinhos e coquetéis, que fazem da opção pela harmonização uma boa escolha. Tudo ali funciona maravilhosamente bem!
Durante o jantar, Díaz, muito simpático, passou por nossa mesa para ver se estava tudo certo e contar um pouco mais sobre os pratos. A hospitalidade é um dos pontos fortes do Sublime.
FLOR DE LIS
Trata-se de um restaurante que conta histórias por meio da cozinha. Ao chegar, desço uma escada e atravesso uma cortina para alcançar o pequeno salão, com uma luz tênue e cozinha à mostra. O ambiente do Flor de Lis tem um ligeiro ar dramático de club noturno. A equipe, enxuta e formada por jovens vestidos informalmente, dá um ar descolado e moderno.
“Aqui comemos cultura e servimos histórias”, diz Diego Telles, que depois de trabalhar nos renomados Noma, na Dinamarca, e Mugaritz, na Espanha, voltou à Guatemala para abrir sua própria casa, em 2013.
“Quando trabalhei com Aduriz, ele nos dizia que o sexto sabor é o das histórias. Eu queria contar uma, mas não sabia qual.”
– Diego Telles
Foi quando ele encontrou uma edição do Popol Vuh, o livro sagrado dos quichés, um povo das terras altas do centro da Guatemala, que sobreviveu à queima de obras acusadas de heréticas no período colonial.
O livro indicou ao chef o caminho que ele procurava. “O Popol Vuh não tem receitas, mas tem histórias que podem ser interpretadas através da comida”, diz Telles.
O menu degustação exala fumaça, fogo e cinzas, em apresentações de estética minimalista e, às vezes, com um ar misterioso. Técnicas de vanguarda e práticas ancestrais se combinam para criar pratos que trazem à mesa ingredientes raros, como o sal preto de Sacapulas, produzido hoje em dia por uma família apenas, e o mel de Huehuetenango.
DIACÁ
No Diacá, o protagonista é o ingrediente. Importantíssimos também são o alimento e o homem no campo que o produziu. Debora Fadul, a chef e proprietária, desenvolveu um método, que chamou de Ecossistema Sensorial dos Ingredientes, com o qual busca compreender profundamente os produtos da terra. Para ela, o ser humano precisa dar significado aos alimentos, por isso, ela “conversa” com eles e tenta ouvir o que pedem.
Isso resulta em pratos originais, de estilo único, livres de influências e amarras da cozinha clássica. O Diacá quer nos tirar da visão antropocentrista e nos reconectar uns com os outros e com a terra. Ali, a comida cura, regenera e promove a harmonia entre o ser humano e a natureza.
Viagem à Guatemala: Muito além da gastronomia
Em uma viagem à Guatemala, percebe-se também que o país surpreende e encanta por razões que vão além de sua premiada gastronomia. Uma das mais significativas é o toque místico que sentimos em quase tudo: rituais maias ancestrais misturados ao cristianismo resultam em um sincretismo potente, com práticas xamânicas e altares de devoção, que estão presentes em muitas das casas e fazem parte do dia a dia dos guatemaltecos.
Localizada na América Central, a Guatemala tem um clima agradável o ano todo, que pode ser fresco nas montanhas e quente na planície, onde a floresta tropical se estende até Yucatán. Como é pequeno, é possível visitar várias regiões em um só dia e perceber os incríveis contrastes entre elas, frutos da imensa biodiversidade da região.
Há muito o que ver na Guatemala: a magia das ruínas de Tikal e a cultura garífuna de Livingston. As piscinas naturais de Semuc Champey e as montanhas de Nebaj. O charme urbano de Antigua, a capital colonial espanhola, com sua arquitetura deslumbrante, e a cidade de Chichicastenango, onde um grande mercado mantém a cultura maia viva e pulsante.
Um dos passeios mais impressionantes em uma viagem à Guatemala é a visita ao Lago Atitlán. O lugar fascinou Aldous Huxley, que o julgou mais bonito do que o Lago Como, na Itália, e um dia inspirou Saint-Exupéry a escrever O Pequeno Príncipe.
E há os vulcões, que estão por toda a parte e, com a sua presença majestosa, parecem espiar e cuidar de nós. É muito difícil não querer voltar.
Jose Wolff, artista e jornalista na Guatemala, colaborou neste artigo.
Clique aqui para ler a matéria na íntegra na edição 13 da Revista UNQUIET