Sabores belgas

Com uma cozinha original restrita, mas cheia de personalidade, a Bélgica é palco de um roteiro gastronômico que desbrava suas mais tradicionais receitas e visita mosteiros e abadias seculares, em busca das cervejas trapistas mais aclamadas do mundo

cervejarias trapistas bélgica

Andar pelas ruas de Bruxelas é quase um desafio. Das portinhas e janelas dos mais variados estabelecimentos, exalam aromas sedutores. Notas de chocolate confundem o estômago: é fome ou desejo? Tanto faz, pois qualquer motivo é bom para provar o legítimo bombom belga. Um pouco mais à frente, waffles dourados recém-preparados convidam a outra beliscada pelo caminho. Os “obstáculos” também chegam em forma de crocantíssimas batatas fritas, que, quando combinadas às encorpadas cervejas nacionais, se tornam ainda mais irresistíveis. 

Uma vez na discreta (e quase tímida) Bélgica, unir a gastronomia ao bom copo é missão (deliciosamente) compulsória, ainda mais diante dos Big 4 do país – chocolate, waffle, batata frita e cerveja, as maravilhas da cozinha belga –, atrações gastronômicas cuja alcunha faz referência aos Big 5 da África.

Cerveja com selo 

Um tesouro capaz de harmonizar com todas as delícias belgas são as verdadeiras e únicas cervejas trapistas. Isso porque, embora todas as cervejas belgas sejam celebradas e afamadas, as trapistas são alçadas a outra categoria. É preciso seguir rigorosos critérios e padrões para ostentar o selo da International Trappist Association: 1) a cerveja deve ser fabricada dentro dos muros de um mosteiro trapista, pelos próprios monges ou sob sua supervisão, 2) a cervejaria tem que ter uma importância secundária no mosteiro e deve seguir práticas adequadas ao modo de vida monástico, 3) a cervejaria não se destina ao lucro e a renda deve cobrir o custo de vida dos monges e a manutenção da propriedade e 4) as cervejarias trapistas da Bélgica devem ser constantemente monitoradas para garantir a qualidade irrepreensível de suas cervejas. 

A Grand Place, no centro de Bruxelas | Foto: Getty Images

A sistemática lista de exigências autoriza apenas 11 mosteiros trapistas no mundo a marcar suas cervejas com o selo de autenticidade trapista. Seis deles estão na Bélgica, dois na Holanda, um na Áustria, um nos Estados Unidos, um na Itália e um na Inglaterra. A origem do nome não tem nada a ver com monges que renunciaram às roupas e andavam aos trapos. O termo “trapista” deriva do mosteiro da Abadia de La Trappe, na França, que em 1685 já possuía a sua cervejaria. A Revolução Francesa e o anticlericalismo do período forçaram o êxodo desses monges para a Holanda e a Bélgica, onde a maioria se estabeleceu. 

Na Idade Média, a cerveja era tomada como remédio e prevenção. A água era de má qualidade e muitas vezes contaminada. Os monges descobriram que a cerveja ajudava a evitar infecções e seus ingredientes faziam dela uma poderosa fonte de vitaminas. Ao longo dos séculos, a qualidade da água melhorou, mas a fabricação de cerveja e o consumo não diminuíram. Pelo contrário. 

O roteiro das cervejarias trapistas

Ao embarcar rumo à exploração das cervejarias trapistas, é possível esperar mais do que sabores marcantes. Prepare-se para uma viagem cheia de histórias, cenários magníficos e sensações inesquecíveis. A maioria dos mosteiros fica em áreas rurais isoladas, lugares que são o sinônimo de paisagens maravilhosas para percorrer de carro e bike. 

Os chocolates belgas estão entre os tesouros de qualquer roteiro gastronômico pelo país
Foto: Getty Images
Vista aérea sobre a cidade de Dinant | Foto: Thais Taverna

A primeira parada é La Trappe. A abadia está em território holandês, na cidade de Tilburg, a um passo da fronteira com a Bélgica. Logo na entrada, aprendemos o lema do mosteiro: “Prove o silêncio”. Ali vivem, oram e trabalham monges desde 1625. A programação deve incluir uma visita às dependências internas da propriedade e a degustação, uma experiência de raros sabores, acompanhada de conversas inesquecíveis com os monges. No restaurante do mosteiro, o cardápio é tentador. E somente ali, na sua parte interna ou no jardim a céu aberto, você terá a oportunidade de provar cervejas raríssimas e, se der sorte, a sazonal Bockbier (7%), a única trapista do tipo no mundo.

Seguindo adiante, cerca de 50 km separam La Trappe da Abadia de Saint Benedict, a morada da discreta Achel. Parte do terreno está na Bélgica, parte na Holanda. É preciso ter em mente que algumas das cervejarias trapistas optam pela discrição, por produção e distribuição restritas e nada de visitas ao interior das fábricas. É o caso da pequena Achel, a menor das trapistas certificadas. As restrições não fazem perder a viagem, pois dá para ver o interior da fábrica por um janelão de vidro na taverna, onde são vendidos as diferentes versões da Achel e os deliciosos produtos da casa.

moules et frites e cervejarias trapistas bélgica
Uma das especialidade locais, o moules et frites
Foto: Getty Images
cervejarias trapistas bélgica - Abadia de Chimay
A linda e preservada cervejaria da Abadia de Chimay | Foto: Thais Taverna
cervejarias trapistas bélgica e gastronomia
O famoso queijo produzido na Abadia de Chimay
Foto: Thais Taverna

Diamante líquido 

A viagem continua rumo a Antuérpia, mais especificamente Westmalle. A apenas 30 minutos do centro da “cidade dos diamantes”, em um trecho percorrido entre vilarejos coloridos e estradas verdejantes, avistamos a abadia, cercada por grandes árvores, que formam uma alameda, ideal para passeios de bike e a pé. Margeando a propriedade, um rio de águas cristalinas corre devagar, como o tempo que se passa por ali. Uma vez no lugar, inicie os trabalhos no Café Trappisten, bem em frente da abadia, degustando a Westmalle Extra, que só é acessível de duas maneiras: sendo um monge de Westmalle ou pedindo ali, no café. Cerveja do estilo Single, ela é produzida apenas duas vezes ao ano, para o consumo dentro do monastério. Desfrute lentamente esse privilégio e reserve lugar para o almoço, servido ali e que confirma o ditado popular: “A comida belga é servida na quantidade da culinária alemã, com a qualidade da comida francesa”. Antes de deixar Antuérpia, faça mais uma incursão local, dessa vez para provar uma trapista legítima no personalíssimo bar De Kulminator, um lugar especial, com uma decoração cheia de personalidade.

A próxima parada é a linda cidade de Bruges, cuja combinação de história, arquitetura e gastronomia salta aos olhos, como um lugar saído de um conto de fadas. Embarque em passeios pelos canais, ladeados por casas coloridas e floridas. Caminhe por ruazinhas tortuosas de pedras. Sinta no ar o delicioso aroma de chocolate e sorria: você está em Bruges. Como se isso não fosse o suficiente, a cidade medieval é o endereço de uma das mais famosas cervejarias trapistas do roteiro. Criada há mais de 500 anos, a cervejaria Halve Mann está localizada no centro de Bruges – um fato interessante é que, para ligar a cervejaria a sua engarrafadora, a 3,2 km de distância, foram criados dutos subterrâneos. Tudo para evitar a circulação de caminhões pelas ruelas da cidade, que é um Patrimônio Mundial da Unesco. É mesmo de se admirar, não é? Tome uma cerveja ou um vinho se estiver com saudade, perca-se por ruazinhas repletas de lojas de chocolates, atravesse a pracinha principal e encontre pratos deliciosos nos diversos bistrôs. 

A exploração

das cervejarias

trapistas

envolve história

e cenários de

tirar o fôlego

cervejaria trapistas belgica
A variedade de cervejas em um empório em Bruges | Foto: Thais Taverna

A melhor do mundo 

Saindo de Bruges, é preciso dirigir outros 70 km por uma estrada bonita e bem sinalizada para conhecer aquela que é reconhecida como a melhor cerveja do mundo. Produzida na Abadia de Saint Sixtus, a Westvleteren 12 tem aroma generoso e sabor complexo. Trata-se de uma cerveja extremamente equilibrada, escura, encorpada, com uma espuma densa e persistente. Mas é melhor provar, mais do que tentar descrever. A Westvleteren 12 é um ícone, um objeto de desejo da maioria dos apaixonados pela bebida, que se tornou lenda quando o site especializado Ratebeer a classificou como “a melhor cerveja do mundo”. A dificuldade de conseguir uma garrafa e, claro, seu alto custo lhe renderam o apelido de “ouro líquido”. Para comprar um exemplar no mosteiro, é preciso fazer um pedido antecipado pelo site, com hora marcada para a retirada na entrada do café e restaurante da abadia, o In De Vrede. Uma vez ali, vale se sentar nas mesas do jardim e apreciar a paisagem e as cervejas. Para acompanhar, peça os queijos e patês da casa. De volta ao percurso, Poperinge, a capital do lúpulo, vai surpreender. Se você nunca viu uma plantação do ingrediente que é base da cerveja, vai se extasiar com a visão da cervejaria St. Bernardus. Mesmo não sendo uma trapista, o moderno museu oferece, no rooftop, um bar e um restaurante com uma vista magnífica da plantação. O lúpulo é uma planta rasteira, que, para facilitar a colheita, tem as ramas suspensas por cabos, que conferem a elas o formato de árvore.

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A taça criada exclusivamente para a cerveja produzida na Orval | Foto: Thais Taverna
Ilustração: Antônio Tavares

Cerveja e música 

Entre os spots mais belos da viagem, Dinant, que fica a 100 km de Bruxelas, na divisa com a França, está às margens do Rio Mosa, na encosta de um enorme penhasco. Uma espécie de pórtico, formado por um rasgo entre dois paredões de pedra, dará as boas-vindas. Dinant parece ter sido desenhada, com seu colorido casario, a igreja encostada na rocha e a cidadela no topo. A paisagem é simplesmente deslumbrante. Vale conhecer o forte no alto do rochedo e atentar para uma curiosidade: foi ali que nasceu Adolphe Sax, o inventor do saxofone. Há um museu dedicado a ele, que já atraiu grandes músicos, como John Coltrane. Na Rue Adolphe Sax, fica o Chez Bouboule, um dos restaurantes onde você pode saborear um inesquecível moules et frites.

Depois de jantar ao som de Dexter Gordon, Bobby Keys, Charlie Parker, Sonny Rollins e Stan Getz, é hora de seguir viagem para Chimay, onde, em 1850, os monges fundaram o Mosteiro de Notre-Dame de Scourmont, que produz essa famosa cerveja trapista.
Uma das cervejarias trapistas da Bélgica mais bonitas e preservadas, a Abadia de Chimay produz também um queijo para lá de especial, feito com o leite da fazenda, refinado nas caves abobadadas do edifício. 

Clique aqui para ler a matéria na íntegra na edição 11 da Revista UNQUIET

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