O Afrikaburn é uma das edições regionais do Burning Man. Acontece sempre no último fim de semana de abril por sete dias em uma fazenda do Karoo, a região semidesértica sul-africana, a quatro horas de carro da Cidade do Cabo.
Maio é um mês de temperatura agradável na Cidade do Cabo, parada obrigatória para quem segue viagem rumo a uma experiência singular numa cidade temporária construída no meio do deserto. Por lá, os banhos são escassos, não há transação comercial além da compra de gelo diário, entregue por um caminhão sempre pela manhã. Não há hierarquia, todo trabalho é comunitário. Criatividade e compartilhamento são motores de sete dias acampados em Tankwaa Karoo. Ninguém é espectador, todos são criadores e participantes ativos do evento.
Um caminhão adaptado que virou ônibus para nos levar até o Afrikaburn me fez sentir num cenário de guerra apocalíptica. A ansiedade vazava pelos poros. Éramos 20 pessoas estranhas que construíram uma pequena vila para morar juntos por uma semana. Levávamos comida que precisaria alimentar todo o grupo durante todo o período, um banheiro portátil para banhos alternados (nada de banho diário porque não há água suficiente), presentes para dar a estranhos e malas cheias de fantasias, afinal por que usar roupas do dia a dia para viver um experimento social do que poderia ser uma sociedade perfeita? No Afrikaburn, a individualidade é levada a sério e é celebrada continuamente. Somos todos diferentes e é isso que faz esse encontro ser tão poderoso.
Na primeira vez que fui, levei comigo um pacote de doce de leite chup chup e cachaça de jambu para presentear as pessoas que cruzassem meu caminho. Fiz sucesso! Também levei na mochila o medo de viver perrengues, de ficar sem banho, de comer mal e de ficar doente. Tudo isso acabou acontecendo, mas a experiência foi tão intensa e transformadora, que no ano seguinte estava no mesmo caminhão-ônibus com o mesmo grupo, formado por amigos e mais dez pessoas que se juntaram à turma, indo viver tudo novamente. Dessa vez o medo deu lugar à empolgação e à alegria de ter o privilégio de estar ali para experimentar de novo algo tão ímpar e verdadeiro.
É difícil traduzir a vivência que temos no Afrikaburn, o filho pródigo do Burning Man, criado na África do Sul em 2007 e que reúne cerca de 12 mil pessoas anualmente. Muito menor que o evento mãe, quem vivenciou os dois afirma que o Afrikaburn é o Burning Man de 20 anos atrás. Ainda pequeno, com muito improviso e menos ostentação. E a África do Sul nos dá a sensação de estar participando da construção de algo novo.
Instalações de arte e carros mutantes estão por todos os lados. Você pode voar num tapete mágico ou pegar carona num rinoceronte, ou num caramujo, e tirar um cochilo dentro de um cupcake. Pelo menos em uma noite é indispensável perseguir o Spirit Train, que solta chamas de tempos em tempos para poder ser localizado em meio à escuridão, para virar a noite dançando numa pista que parece saída de uma novela ciberpunk.
Durante o dia, para refrescar do calor que pode ser implacável, a pedida é se proteger nas grandes tendas temáticas que oferecem programação diária ou dentro das imensas instalações de arte antes de serem queimadas. Show de mágica e música ao vivo, bate-papo sobre assuntos emergentes, leitura de tarô, workshops diversos, ioga, meditação e palestras estão disponíveis o tempo todo para ocupar quem não consegue ficar sem fazer nada. Mas recomendo: perca-se flanando pelo deserto sem planos. Puxe conversa com as pessoas que cruzarem seu caminho e aproveite para distribuir os presentes levados na mala. Os aprendizados, as alegrias e as boas surpresas são insuperáveis.
O nascer e o pôr do sol e o surgimento da lua são espetáculos à parte, afinal estamos no deserto. Neste momento, pare tudo o que está fazendo ou escolha uma pista de dança que te faça sentir participando de um ritual ancestral para celebrar os dois grandes astros que regem nosso dia a dia, e que mexem tanto com a gente.
A generosidade e o amor são tão presentes que quase se materializam à nossa frente. O Afrikaburn é feito de comunhão, alegria e igualdade. Em vários momentos a sensação é de estarmos vivendo o rastro de uma civilização em Bartertown, em uma nova versão de Mad Max.
Mas não é porque é um evento de contracultura que não há regras. São 11 os princípios a serem seguidos, um a mais que o Burning Man. “Cada um ensina um” é o décimo primeiro, afinal uma comunidade autossuficiente precisa ser responsável por disseminar e proteger sua própria cultura. E isso é colocado em prática várias vezes ao dia.
Não há princípio mais ou menos importante, mas o “não deixe rastros” é o que nos acompanha todo o tempo. Não há lugar para deixar o lixo. Cada um é responsável pelo seu, que deve ser devidamente guardado e levado de volta para a Cidade do Cabo quando a semana se encerra. É fácil? Não. É um exercício diário aprender sobre a quantidade de lixo que geramos desnecessariamente. A partir do momento em que somos responsáveis por ele, produzimos menos lixo porque seu descarte não é simples.
Para quem quer viver o evento da maneira como ele é idealizado, o caminho é fazer trabalhos voluntários e/ou oferecer programação própria para os participantes. Eu fui assistente de mágico, dei workshop de como fazer caipirinha, servi chá e bolinho para os que visitaram meu acampamento, trabalhei em dias alternados na nossa cozinha, limpei banheiros do evento (que são todos ecológicos) e o chão do deserto. Fiz também um curso para atuar junto aos bombeiros durante as queimas das instalações. Todas são queimadas ao longo da semana. As duas principais, conhecidas como o Templo da Gratidão e San Clan, são queimadas no sábado e no domingo. A queima do Templo é um dos momentos mais catárticos do evento, pois a maior parte dos participantes assistem e, diferentemente das demais, é feita em total silêncio. Não se ouve nada além do crepitar do fogo.
À noite, festas de todos os tipos se espalham por todos os lados varando madrugada adentro, tanto que o Afrikaburn conta com duas áreas distintas para acampar: A zona quieta e a barulhenta, não que a primeira trará o silêncio tão típico do deserto, mas propicia um pouco mais de tranquilidade para os menos festeiros.
O Wi-Fi não chega por lá. A forma de se comunicar com amigos que estão em outras áreas do evento é enviar recados utilizando o “Burning mail”, ou seja, carta escrita na maneira mais old school: à mão. Uma dica de ouro: é levar uma bicicleta. Eu aluguei uma na Cidade do Cabo.
Após uma semana vivendo intensamente e quase me sentindo inapropriada para voltar a viver em sociedade, aumentam o cansaço e a saudade. Viver nesta realidade alternativa é colocar os pés no chão para acreditar que o mundo pode ser, sim, um lugar melhor e mais igual, e que a mudança depende de cada um de nós. Leva-se um tempo para voltar ao normal porque são muitas vivências, reflexões e aprendizados. É o tipo de experiência que recomendo viver antes de morrer.
Antes de embarcar para o Brasil, vale passar uns dias na Cidade do Cabo para se aprumar. A capital sul-africana nos recebe com bons banhos, cama de verdade para dormir e uma gastronomia local rica, com pratos feitos à base de frutos do mar fartos e apetitosos.
Dentre os bairros que já me hospedei, incluindo um à beira mar (Sea Point), gosto de ficar no Gardens, o bairro aos pés da famosa Table Mountain, não muito distante da região central.
Compartilho aqui meu mapa da mina da Cidade do Cabo, mas ressalto três lugares imperdíveis: o The Black Sheep, restaurante de cozinha sul-africana comandada por um peruano, conta com menu sazonal e uma excelente carta de vinhos. Se o filé de avestruz estiver disponível, não titubeie e peça; bater perna em Woodstock, bairro trendy com dois dos melhores restaurantes de culinária mais sofisticada da cidade, o The Pot Luck Club e o The Test Kitchen, ambos concorridíssimos, só com reserva. E, por fim, tomar um brunch ou apenas um bom café no Truth Roasting Coffee, que já foi considerado um dos melhores do mundo e sua decoração inusitada remete ao Afrikaburn
Dicas para quem quer conhecer o Afrikaburn
Quem se animar para a edição de 2022, precisa ficar atento às vendas de ingressos que começam no dia 1 de dezembro. Corra e faça o registro antecipado. A garantia de conseguir um lugar é maior.
É possível fazer tudo por conta própria ou encontrar um acampamento temático, como o que fiquei. O jeito mais fácil é participar de grupos no Facebook dedicados ao Afrikaburn para encontrar uma turma para se juntar ou procurar por um projeto para fazer parte diretamente no site oficial. Aumentou bastante a participação de brasileiros nos últimos anos, tanto que em 2016 eu criei este grupo para podermos nos organizar juntos. Ainda há muitas dúvidas sobre a próxima edição por conta da pandemia, então uma recomendação é assinar a newsletter oficial do evento.
25 de abril a 1 de maio, 2022
Tankwa Karoo National Park, África do Sul
São vários os tipos de tickets de entrada com custos variando entre US$ 121 a US$ 247
O passe para o carro é cobrado a parte custando entre US$ 19 e US$ 31