“O universo é feito de histórias, e não de átomos”, aponta, brilhantemente, a escritora norte-americana Muriel Rukeyser em seu poema The Speed of Darkness.
Uma dessas histórias, que ecoa pelos quatro cantos do planeta, é a de Jesus, que, em seus anos esquecidos pelos evangelhos, teria encontrado refúgio no Monastério de Hemis, encravado nas montanhas do extremo norte da Índia, onde estudou os ensinamentos budistas antes de levá-los consigo para a Palestina, já próximo do crepúsculo de sua vida.
Por mais improvável que soe, essa narrativa fascinante nos lembra que sempre haverá espaço para histórias que nos transportem para uma realidade fantástica, elevando-nos acima do cotidiano e nos fazendo sonhar.
Foi atravessando recantos remotos por entre os picos majestosos da enigmática região de Ladakh, navegando por entre desfiladeiros ameaçadores e planaltos eternos, acariciados pelo vento, que embarquei numa busca por sentido e solitude, na tentativa de escrever mais um capítulo de minha própria história.
Cada passo foi uma oportunidade de me conectar com a minha própria essência e com a grandiosidade do universo ao meu redor. Nesse refúgio encantado, onde o tempo é medido pela luz do Sol e pelas marés do espírito, mergulhei na essência de um lugar onde a natureza selvagem se mescla em harmonia com a sensibilidade profunda e rebuscada do budismo tibetano.
As imagens aqui impressas capturam momentos efêmeros, mas repletos de significado, que ilustram a magnitude e a serenidade que permeiam esse território histórico, impregnado de influências culturais e étnicas predominantemente tibetanas.
Chamba Camp
Tour Especial nos arredores do camp, com visita às stupas e vilarejos do camp + cerimônia cultural de boas vindas.
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O pequeno Tibete
Comenta-se que em Leh, a minúscula capital de Ladakh, de apenas 30 mil habitantes, a cultura tibetana é mais conservada que no próprio Tibete. Essa faceta se deve, em parte, ao fato de ser uma região de difícil acesso, isolada do resto do mundo por quase oito meses seguidos de neve e frio extremos ‒ tornando-se alcançável apenas por via aérea. Afastados também das amarras ideológicas da China, os povos de Ladakh se sentem livres para expressar e praticar sua fé sem receios.
Diferentemente dos países do Sudeste Asiático, como o Camboja (praticante da linhagem budista theravada) ‒, Ladakh viu florescer o budismo da corrente mahayana no século V.
Ao contrário do theravada, a mais antiga entre as escolas budistas sobreviventes, em que Buda é uma figura histórica, a tradição mahayana nos conta de um Buda que se iluminou muitas vidas antes e cuja consciência se manifestou em diferentes reinos após a sua morte, e nas mais variadas formas ‒ o que explica a profusão de imagens com numerosos braços, rostos e pernas, que habitam os mais de 100 mosteiros espalhados pelas encostas escarpadas de Ladakh.
O Monastério de Thiksey
Se tudo em Ladakh é superlativo, épico e esmagador, é apenas nos monastérios sagrados, onde a busca por um entendimento maior e mais amplo da região se torna palpável. Nesses verdadeiros oásis da alma, senti-me envolvido por um silêncio profundo, penetrado por todo mantra entoado, lembrando-me a cada segundo que a jornada interior é tão importante quanto a exploração externa.
Dos monastérios espalhados pelas encostas de Ladakh, o Sumda Chun, construído no século XI, talvez seja o mais importante sobrevivente dos primórdios do budismo tibetano. De difícil acesso e ainda mais afastado que o Monastério de Alchi, mas tão antigo quanto, Sumda Chun é frequentado apenas por um punhado de monges, que encontram no seu isolamento a paz necessária para as suas preces.
Mas se Sumda Chun surpreende por sua aura soturna e enigmática, o Monastério de Thiksey encanta pela grandiosidade e pela beleza de sua arquitetura, que nos faz lembrar o Palácio de Potala, em Lhassa, Tibete.
Do topo de Thiksey, avistamos as planícies inundadas do espetacular Vale do Indo, o Monastério de Matho (a leste), o Palácio Real de Stok (ao sul) e o antigo palácio real em Shey (a oeste).
Uma visita ao Monastério de Thiksey, antes do amanhecer, a fim de acompanhar o início das preces, está entre uma das experiências mais encantadoras da minha vida.
Festival de Hemis
De todas as festas religiosas que acontecem em Ladakh nos meses mais quentes, entre abril e agosto, talvez o Festival de Hemis seja o maior e mais emblemático. Os festejos, que duram dois dias e são dedicados ao guru Rinpoche, o fundador da escola budista tibetana, começam bem cedo, pela manhã, no pátio retangular do milenar Monastério de Hemis, situado a quase 4 mil metros de altura, em meio a gigantescas montanhas de pedra, salpicadas de minúsculos vilarejos ‒ de onde descem os habitantes das tribos ladaquianas, à procura de bênção e proteção contra as forças do mal.O festival impressiona pela ancestralidade de seus sons e danças, que nos arremessam sem escalas para outra dimensão. Só estando lá para entender ‒ totalmente desnorteado pelo sol causticante do Himalaia e pelo poderoso chamado das dung chen, as longas cornetas tibetanas.
On the road
É preciso se movimentar. Deixar as certezas e o conforto da cidade para trás e seguir em frente. Se o ar rarefeito e as longas distâncias parecem invencíveis, saiba que é apenas atravessando a região pelas suas estradas empoeiradas, e muitas vezes invisíveis, que se consegue criar o mapa da grandiosidade de Ladakh.
Para alcançar um dos destinos mais representativos da região, seguimos pela Khardung La, a mais alta rodovia do planeta, a cerca de 5,6 mil metros de altitude, onde literalmente perde-se
o fôlego.
Avançando por entre geleiras eternas e um céu azul-marinho, que parece desabar sobre a nossa cabeça, temos a sensação de que chegamos ao topo do mundo. E, como se o sentimento inebriante de vitória já não fosse o suficiente, nada pode nos preparar para o que vem a seguir.
O Vale de Nubra
Esparramado entre as exuberantes montanhas do Himalaia e seus picos nevados, estende-se o Vale de Nubra, considerado, sem exageros, a região mais linda do planeta.
Estar diante das paisagens acachapantes de Nubra é uma experiência sinestésica na mais simples e clara acepção do termo: ouvimos suas cores, enxergamos seus sons, nos empanturramos de suas belezas. São paisagens que se estendem como pinturas vivas, revelando uma paleta de cores que transcende a imaginação. Cordilheiras nevadas, que se erguem orgulhosas, como as guardiãs eternas de um segredo ancestral, e permeadas por monastérios milenares, onde a alma vislumbra a sua morada e se conecta com a grandeza do universo.
É nesse cenário transcendental que encontro o povo de Ladakh, cujos rostos traduzem uma sabedoria acumulada ao longo de séculos. Homens e mulheres que encontraram uma ligação íntima com a natureza e abraçaram a simplicidade como uma dádiva divina. As roupas puídas e os sorrisos sinceros revelam a alegria que reside no coração de uma comunidade unida pela compaixão e pelo compartilhamento de valores nobres.
Epílogo
Conta-se que Ladakh é o exato ponto de contato entre o céu e a terra ‒ o paraíso divino ao alcance das mãos. Eu não duvido. São essas as histórias em que escolhemos acreditar, que nos tornam aquilo que somos. Afinal, somos todos feitos de histórias.
Hospitalidade
Leh, a capital de Ladakh, oferece opções de hospedagem para todos os gostos.
O luxuoso Stok Palace Hotel, por exemplo, pode proporcionar uma experiência fantástica por si só, mas está um pouco afastado do centro, o que deve ser considerado se você pretende se deslocar a pé. Por outro lado, o The G Residency, bem mais simples, localiza-se no topo de uma colina de pedra, a apenas dez minutos do Leh Market, uma pequena rua em forma de L, onde a maioria das lojas e dos restaurantes se concentra.
No entanto, é importante observar que, ao viajar por Ladakh, será necessário se hospedar em uma das poucas residências populares espalhadas pela região, que recentemente foram equipadas com painéis de energia solar.
A partir de Leh é possível chegar de carro aos templos de Thiksey e Hemis, sem a necessidade de se hospedar num vilarejo mais próximo, embora essa também possa ser uma experiência tentadora.
O Green Valley Homestay, localizado no vilarejo de Sumoor, é uma excelente opção nesse vale, próximo aos monastérios de Diskit e Ensa.
De Nubra a Leh, atravessando a majestosa Wari la Pass, a mais de 5 mil metros de altitude, a quarta estrada mais alta do mundo, você chegará ao minúsculo vilarejo de Teri, composto de duas casas. Foi lá que me hospedei, na Cho House Ecostay, talvez o momento mais acolhedor de toda a minha viagem, traçada pela Mountain Homestays.
A Mountain Homestays é uma iniciativa de turismo rural dedicada a criar experiências imersivas excepcionais para viajantes, facilitando o acesso a regiões montanhosas e remotas de Ladakh para a exploração. Ela oferece um profundo mergulho na cultura local, com um compromisso com a sustentabilidade, ao selecionar cuidadosamente suas subhomestays nas comunidades indígenas.
Clique aqui para ler a matéria na íntegra na edição 14 da Revista UNQUIET.