O sentido de viajar é o encontro

O melhor destino acaba sempre sendo as pessoas, em especial quando suas almas se sentem livres de pressão

emicida

Os Krenak, um povo que originalmente vivia na Mata Atlântica e no baixo Recôncavo Baiano, dentre outras coisas belas, nos presenteou com meu amigo Aílton, que, com suas palavras, escritas ou faladas, tem nos dado chacoalhões mais do que necessários: urgentes. Ele tem em sua visão de mundo uma prática fantástica. Referem-se àquilo que nos ambientes urbanos fomos ensinados a tratar como coisas, em especial os elementos da natureza, como seres vivos, algo que de fato são, e acabam passando desapercebidos, pois seguimos com os olhos sequestrados pelas ciências de alta tecnologia. 

A montanha tem seu próprio nome e o Rio Doce (o mesmo que a ganância cega da Samarco soterrou com uma quantidade de lama tóxica, que alcançou o Oceano Atlântico) é chamado de avô, ou Uatu. Certa vez, conversávamos sobre isso, e ele disse que, após esse triste episódio, gerado pela irresponsabilidade da mineradora, seu avô estava muito doente. Inocentemente perguntei mais sobre seu avô e ele, com gentileza, fez com que minha mente se assentasse no chão de sua cosmologia. 

Assim entendi que Uatu era o rio, e o rio era o avô de seu povo. Com certeza, meu maior prazer em viajar vem do sentimento que esse tipo de encontro me traz, um encontro que é muito maior do que o encontro entre dois indivíduos humanos. A oportunidade de olhar nossas cidades de fora acaba por permitir também que façamos o mesmo com nossas culturas e com nós mesmos. 

Quem troca ideias sempre vai embora com uma a mais do que quando chegou. 

Para mim, que estou a cada dia em uma cidade ‒ algumas vezes, cada dia em um país (e há muitos mundos dentro de cada país) ‒, todo mundo só quer, no final do dia, tocar algo que possa chamar de felicidade. Isso é o que nos iguala enquanto seres humanos, independentemente de a felicidade significar um tênis novo, pescar em um rio limpo, colocar os filhos para dormir, ver a floresta em pé, zerar seus boletos, não ser bombardeado, sair para dançar ou comer mandioca quentinha. É uma busca comum a todos nós. 

Sempre vivo situações que me fazem chegar a essa conclusão. Pessoas oferecem seu mundo às outras na intenção de fazer com que todos se sintam em casa. Na verdade, em um lar, pois, como cantou Dom Salvador, “sem amor uma casa é só uma moradia, com ele tudo vira lar”. Mesmo quando estamos a quilômetros da nossa própria casa. 

Quando estive pela primeira vez em Cabo Verde, viajei pelo interior, nos arredores de Praia. Ali conheci e gravei canções com as batucadoras do Terreiro dos Órgãos. Era um período de muita seca. Neusa, uma das cantoras, me chamou para fora a certa altura e me pediu desculpas pelo tempo seco. Disse que em geral aquela montanha, que estava com uma aparência tão ressecada, era coberta de flores, e ela gostaria que eu tivesse a oportunidade de ver como a montanha coberta de flores era linda. Anos mais tarde, em Portugal, na cidade do Porto, fui recebido pela mãe de um amigo, dona Jacinta, que, ao me buscar no aeroporto em um dia chuvoso, desculpou-se pelo mau tempo, dizendo que a cidade era muito bonita e que ela rezaria para que o sol surgisse nos próximos dias, assim poderíamos ver também a beleza de sua terra.

Em tempos onde a humanidade, amedrontada, se vê seduzida pelas distâncias, pelas fronteiras e pelos muros, caindo nas armadilhas dos confrontos bélicos, numa experiência pós-pandêmica que deixou de alguma forma algum tipo de sequela em todos, o melhor destino acaba sempre sendo as pessoas, em especial quando suas almas se sentem livres de pressão. O outro podendo oferecer o seu melhor. Que compartilha conosco Uatu, a montanha florida que a primavera trará ou as belezas de uma tarde ensolarada numa pracinha do Porto. A vida faz sentido no encontro. É aí que a beleza nasce, e a beleza é o melhor antídoto para afugentar o medo.

    UNQUIET Newsletter

    Voltar ao topo