A minha primeira vista da Groenlândia foi um iceberg maior do que uma cidade. A bordo do veleiro Sardinha-2, eu acabava de atravessar o Atlântico em solitário pela segunda vez. Tinha começado a viagem na França, realizado uma parada na Irlanda e fazia 13 dias que eu não via terra ou outros humanos. Durante o trajeto, três fulmares-boreais, aves marinhas cinza, acompanharam o Sardinha-2. Eles faziam voos rasantes no nariz do barco quando havia vento e boiavam na água ao nosso redor quando o tempo acalmava. Quando a terra ficou próxima, os fulmares partiram.
Nesse momento, eu me senti feliz e preocupada: ver o primeiro iceberg era o resultado de uma grande etapa, mas eu sabia que havia entrado em uma zona de navegação perigosa ‒ e que nenhuma experiência ou preparo anterior ia tornar o mar mais gentil, e nem diminuir os perigos que estavam por vir.
Encontros com a natureza ártica
Fora da água, o iceberg era alto como uma montanha. Levantei os binóculos, que carregava pendurados no pescoço, e apontei para o alto do gelo. Lá em cima, eu pude ver milhares de andorinhas. Pesquisei a espécie no guia de identificação de animais: moleiro-de-cauda-comprida, ou Stercorarius longicaudus. Como vários animais, esses moleiros fazem ninhos nas altas latitudes durante o verão e voam para lugares mais quentes no inverno. Meu principal pensamento era este: todos os anos, essas pequenas aves fazem a mesma viagem que fiz com o Sardinha-2, mas, enquanto eu precisei de um barco com grandes velas, elas cruzam calmarias e tempestades batendo pequenas asas, tendo seu próprio corpo como instrumento.
Desafios da navegação em solitário
Não é preciso ser bom em tudo para velejar em solitário, mas a gente não pode ser ruim em nada. Em águas quentes, a parte mais difícil de navegar sozinha é gerir o sono: durmo em pedacinhos de 20 ou 30 minutos de cada vez, para poder reagir rápido caso o vento mude ou apareça algum perigo. Em águas frias, além de diminuir mais os períodos de sono e às vezes passar dias sem dormir, é preciso se desviar de icebergs, desconfiar das cartas náuticas e resolver problemas técnicos sem ajuda.
Há poucas chances de ter apoio em caso de problema e, muitas vezes, o resgate é impossível. Por um lado, isso me causa muito medo. Por outro, me sinto estimulada a dar sempre o meu melhor, a aprender mais com todas as pessoas que encontro, a estudar a meteorologia, as mudanças climáticas, a cultura local e os animais. E ser responsável por cada milha do nosso caminho torna a chegada mais feliz e a memória mais poderosa.
Preparação para o desconhecido
Eu encontraria muitos riscos pela frente, mas o maior desafio que vivi foi estar pronta para partir. A preparação do barco levou 15 meses e foi cheia de imprevistos. Muitas vezes, desistir era a resposta mais lógica diante de listas infinitas de coisas para aprontar em pouco tempo e com recursos limitados. Se eu parti, foi graças à generosidade de muitos amigos e desconhecidos, ao apoio de patrocinadores (NTT Data e Magalu) e parceiros técnicos e à determinação, às vezes insensata, de dar o meu máximo para que o barco ficasse pronto.
Solidão escolhida e o retorno à conexão humana
Além dele, eu precisava me sentir segura para navegar em lugares difíceis e viver isolada. Ouvi muitos mais desencorajamentos do que incentivos, muitos mais “não vai dar certo” do que “vai ser legal”. Ouvi todo tipo de discurso protetor e de preconceitos de gênero por ser mulher. Contra a nossa vontade, criei uma casca para me proteger das intromissões alheias e dos conselhos que não pedi. Tinha muito medo de não estar pronta. Como saber se a gente está preparado para algo difícil que ainda não viveu?
A chegada à Groenlândia era só o começo de uma longa jornada. Nos meses seguintes, eu navegaria até a Baía Disko e ficaria ancorada numa baía por oito meses com o barco preso no mar congelado. Nesse tempo, o silêncio foi o que mais ouvi e a solidão foi a minha maior companheira. Tive medo, frio e também muitas alegrias. Sei que a minha solidão foi feliz porque eu a escolhi, e porque sabia que acabaria. Quando o verão voltou e as aves apareceram em cima dos icebergs, eu entendi que era o momento de reencontrar os indivíduos da minha espécie. A felicidade existe quando a gente está sozinha, mas ela se multiplica quando estamos em grupo.
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A brasileira Tamara Klink é velejadora e escritora, e se tornou a primeira mulher a completar o período de invernagem no Ártico
em solitário.