Muito mais do que uma viagem: a experiência fascinante do ritual do Jawari e de vivenciar o dia a dia de uma comunidade originária do povo Kuikuro, no Território Indígena do Xingu, a primeira terra indígena demarcada no Brasil
Era fim de tarde. A imagem da terra vermelha, suspensa pelo pisado da dança ritual de mulheres e homens seminus, majestosos, foi como uma saudação de chegada. Primeiro enfileirados, depois em um grande círculo, com as sombras dos corpos projetadas no pátio central da aldeia Ipatsé, a maior entre as comunidades do povo Kuikuro.
O ritual do Jawari, também conhecido como Festa da Guerra e da Paz, é um evento complexo, dedicado aos guerreiros mortos já homenageados pelo Kuarup (a principal cerimônia fúnebre do Xingu), e tem como característica a disputa de arremesso de dardos entre dois grupos antagônicos. A dinâmica consiste em insultos brincalhões, de lado a lado, tendo como o alvo dos dardos um boneco de palha, no centro do pátio. Os donos do Jawari geralmente convidam “os parentes” de outra aldeia para participar. Uma oportunidade ritualística para resolver antigas mágoas e celebrar a paz! Este ano, os Kamayurá da aldeia Ipavu foram os convidados para a cerimônia, realizada no final de junho.
A celebração do Jawari é permeada ainda por um conjunto fantástico de cânticos, entoados durante toda a madrugada. Homens e mulheres entram de oca em oca, dançando e batendo os pés de forma ritmada, regidos por um cantar gutural, em tons graves. A artista plástica paulistana Eide Feldon, que visitou o Xingu pela primeira vez, ficou impactada:
“Foi muito especial estar dormindo em minha rede e perceber a aproximação das vozes. E, quando entraram na oca, parecia que entrava a floresta toda”
Esse estado de encantamento também bateu forte no fotógrafo holandês Johan Gerrits. “Fiquei sem dormir, meio que hipnotizado, principalmente com a voz baixa das mulheres. Algo incrível, que nunca vou esquecer.”
Os relatos de Eide e Johan dão um pouco a dimensão da potência desse ritual, um dos chamarizes que os levaram a fazer essa viagem ao Xingu. Os dois fizeram parte da Expedição Kuikuro Jawari 2023, sob a orientação do fotógrafo e indigenista Renato Soares. Autor do livro Yawalapíti, Soares registra, há quase quatro décadas, a vida e a cultura dos povos originários. Uma vez ao ano e sempre com a anuência das comunidades, ele organiza viagens para levar grupos de interessados em conhecer o cotidiano nas aldeias, que recebem parte da renda obtida. “É uma forma de valorizar a cultura e trazer recursos diretos e indiretos com a venda de artesanato, além de gerar um impacto positivo entre os moradores”, destaca Soares.
Viagem ao Xingu: a logística de desafios e novas paisagens
Para chegar à aldeia Ipatsé, foram necessários dois dias de viagem, a partir de Goiânia. Os participantes pernoitaram em um hotel e seguiram no dia seguinte para Canarana (MT). Depois foram 700 km e nove horas em um micro-ônibus, passando por áreas de cerrado, de onde se pode avistar os chapadões da Serra do Roncador e grandes extensões agrícolas.
A etapa final, de Canarana à reserva indígena, exige mais 300 km, percorridos em veículos 4×4, em estrada de terra na maior parte das cinco horas de viagem. Foi uma semana de convívio real na aldeia, do total de dez dias de expedição.
Na rede, dentro da oca
A aldeia Ipatsé é a maior entre as sete comunidades do povo Kuikuro. São aproximadamente 300 moradores, distribuídos em 32 ocas, dispostas lado a lado, formando um grande círculo em torno de um pátio de chão batido. Grupos de duas ou três pessoas se hospedaram nessas casas, dormindo em redes, juntamente com os núcleos familiares, com os quais puderam interagir. A maioria fala razoavelmente o português, além do idioma nativo. Dormir em rede é quase sempre um desafio, mas logo o corpo se acostuma e agradece o conforto.
De base ovalada, as ocas são estruturadas com troncos de diferentes árvores e cobertas com sapé e têm apenas duas portas, uma que dá para o pátio central e outra como saída para o quintal. Uma construção considerada de grande complexidade arquitetônica.
Viagem ao Xingu: O povo Kuikuro
Falantes de uma língua do tronco karib, os Kuikuro são o povo com a maior população da reserva, aproximadamente 900 pessoas, espalhadas por sete aldeias. São conhecidos pelas belas cestarias, feitas com a fibra do buriti, e pelos imponentes colares de caramujo, os inhu aketühügü (caramujo cortado), na língua nativa. Esses colares, considerados a “joia do Xingu”, são usados como moeda para trocas e pagamentos por serviços rituais e do pajé.
Cortada de norte a sul pelo Rio Xingu, a reserva tem uma área de 2,6 milhões de hectares, na região nordeste de Mato Grosso, em uma zona de transição ecológica de cerrados, campos e florestas. No Território Indígena do Xingu, demarcado em 1961 como “parque”, vivem entre 7 mil e 8 mil pessoas, falantes de quatro diferentes troncos linguísticos e distribuídas em mais de 100 aldeias, de 16 etnias. Em sua porção sul, na área cultural conhecida como Alto Xingu, é onde vivem os Kuikuro.
O peixe e o beiju
Os dias foram intensos de beleza, pontuados por sorrisos e gentilezas, com os anfitriões sempre dispostos para conversas sobre as tradições culturais. Tempo para observar a incrível força das mulheres para o trabalho. Elas produzem um delicado artesanato com miçangas e cestarias com fibras de buriti, e também são responsáveis pelo longo processo manual para obter o polvilho, derivado da brasileiríssima mandioca. Com o polvilho, preparam os beijus, feitos em grandes chapas aquecidas.
“Juntamente com o beiju, o peixe faz parte da base da alimentação tradicional no Alto Xingu”
Diferentes pescados são retirados com fartura de rios e lagoas. Todos preparados à moda xinguana: eviscerados e assados na brasa, sem sal ou outro tempero.
A pintura corporal
O negro do jenipapo e o vermelho do urucum são as cores mais marcantes usadas no grafismo xinguano. As pinturas vestem os corpos de homens e mulheres como trajes de gala e indicam a identidade cultural de cada povo.
São geralmente feitas por um parente próximo, na semiescuridão da oca, onde se preparam aqueles que vão participar dos rituais. A arte da pintura corporal é desenvolvida desde muito cedo entre os indígenas.
A economista dinamarquesa Dorte Verner, que já viajou por mais de 170 países, afirmou que tem muito a aprender com os povos da floresta. “Além das cerimônias incríveis, da hospitalidade e da gentileza das pessoas, o que realmente me impressiona é como elas são capazes de proteger sua cultura de todas as pressões externas, incluindo desmatamento e mudanças climáticas.”
Viagem ao Xingu: ah, o Rio Buriti
Os dias foram todos de muito calor, por volta de 35 °C. Depois de uma sessão de fotos no pátio da aldeia, o torpor provocado só seria aliviado com um banho refrescante no idílico Rio Buriti, alcançado após uma caminhada de 20 minutos por uma trilha na mata. De águas calmas e transparentes, o rio guarda imensos buritizais, que emolduram suas margens. É onde crianças, mulheres e homens da comunidade vão brincar, banhar, lavar roupa, pescar, viver.
Como um sonho, o rio faz parte das melhores lembranças dessa expedição à apaixonante aldeia Ipatsé, do valente e alegre povo Kuikuro, do fabuloso Território Indígena do Xingu.
Viagem ao Xingu:em Tempo
Com o repasse de recursos feitos pela expedição, a associação Ipatsé Kuikuro completou o valor para comprar um caminhão para a comunidade. Em setembro de 2024, está prevista uma nova jornada ao Xingu para conhecer o ritual feminino de Yamurikumã, a Festa das Mulheres.
Matéria publicada na edição 13 da Revista UNQUIET.