Cariri paraibano: sertão profundo

Entre o Ceará e a Paraíba, essa região propõe um olhar para um Brasil profundo, rico em arte, folclore, artesanato e gente de força e fé. E repleto de natureza bruta

“O que é Cariri?”, me perguntou uma amiga enquanto eu contava sobre a viagem feita a São João do Cariri — parte do Mapa do Turismo Brasileiro — na Paraíba. Cariri é uma região do Brasil, situada entre o Ceará e a Paraíba. Conhecida pela forte herança cultural, ela carrega tradições importantes para a história brasileira. Ali manifestações artísticas e folclóricas são preservadas e celebradas.

Mas o Cariri também é um substantivo masculino para definir a caatinga de vegetação menos rude da Paraíba e a família linguística do tronco macro-jê (uma árvore já extinta). Ou ainda a palavra pertencente ao grupo indígena Cariri. A data é incerta, mas diz-se que eles chegaram por volta de 1899. Migraram do norte do país e habitaram a região da Serra do Araripe (APA da Chapada do Araripe) e do semiárido da Paraíba.

Tudo isso é o Cariri e tudo isso caberia na resposta à pergunta com a qual abri o texto. Só que viver o Cariri é muito mais do que as definições objetivas que uma busca em qualquer provedor de internet ou chat de IA poderiam dar ao viajante.

As impressionantes formações rochosas do lajedo do Pai Mateus, em Cabaceiras
Morador local veste trajes típicos do cangaço

Vivência Latente 

Para viver o Cariri na pele, nas entranhas do corpo, é preciso partir na expedição da Que Visu – Expedição Cariri Paraibano, dos irmãos Pablo e Thiago Buriti, juntamente com o estilista Ronaldo Fraga. O trio tem como cerne a experiência do viajante. A proposta é viver o Cariri. Sentir seus cheiros, provar seus sabores, descobrir suas artes, escutar suas músicas. É uma imersão. “Não visite. Viva”, diz o Manifesto do Viajante, da Que Visu.

A expedição percorre alguns dos pequenos municípios da Paraíba e passa também pela vida de quem vive por ali. Esse mergulho dá a chance ao viajante de entender a cultura, a arte e o modo de vida de um Brasil com frequência distante e desconhecido. “Muito me alegra ver a expedição funcionar como uma ponte viva entre os Brasis – esse país que é muitos –, criando passagens entre o que se faz com a alma e o que se consome com o coração”, comenta Ronaldo.

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Antiga morada de Zabé da Louca, famosa personagem local

O Cuscuz como Ponto de Partida

O percurso se inicia em Ingá, cidade que abriga a enigmática Pedra do Ingá, um dos mais importantes sítios arqueológicos do Brasil. Conhecida como Itacoatiara, a formação rochosa possui inscrições rupestres entalhadas há milhares de anos, que atrai estudiosos e viajantes. Além das inscrições, Ingá é lar do Memorial do Cuscuz, onde dona Lia prepara o tradicional cuscuz “cabeça amarrada”, uma receita herdada de sua avó Guidinha. Feito com milho plantado por ela mesma e pilado manualmente na antiga pedra herdada da bisavó, o prato é símbolo de resistência e afeto. No quintal de sua casa, dona Lia nos recebe com uma mesa farta de comida e de histórias. Não tem quem não termine de escutá-la com os olhos marejados. “Um alimento, assim como uma roupa, pode não mudar o mundo, mas transforma o olhar de quem cria, de quem veste e de quem se alimenta”, diz Ronaldo. E transforma mesmo. 

Ao percorrer pequenos municípios da Paraíba, a expedição apresenta um Brasil desconhecido, rico em cultura e arte

Retratos antigos na Fazenda Carnaúba
Vista sobre o lajedo do Pai Marinho

Tramas de Força e Delicadeza

Em Monteiro, a expedição visita o Centro de Referência da Renda Renascença (Crença), um espaço dedicado à preservação e promoção dessa arte têxtil tradicional. Ele funciona como vitrine para a produção local e ponto de encontro para as artesãs que buscam capacitação e orientação. As rendeiras da cidade tecem peças que sustentam famílias e movimentam a economia. E sob a batuta do estilista Ronaldo Fraga criam coleções únicas e disputadíssimas. “A minha história com as rendeiras da renascença começou como quem tropeça em um tesouro esquecido. Foi em 2003, numa oficina de aculturação de design, lá em Monteiro, no coração rendado do Cariri paraibano”, conta o estilista. “Desde então, o fio que une meus desenhos às mãos dessas mulheres nunca mais se desfez.” 

Calango em um cacto
O entardecer sobre o lajedo do Pai Mateu

Mulheres que Florescem no Sertão

Outras duas mulheres são icônicas nessa viagem: dona Lúcia e Josivane. Dona Lúcia, mãe de sete filhos, moradores de Boqueirão, é a segunda parada. Artesã, ela domina o tear como poucos. Suas mãos e seus pés trabalham como uma máquina de costura industrial, entrelaçando fios e produzindo tapetes, toalhas, redes e passadeiras. Na sala de casa, ela convida os viajantes a experimentar o tear manual. A eles, não bastasse faltar ritmo e sincronicidade de movimentos, falta também força. Mas vale a experiência. 

Já no assentamento Santa Catarina, conhecido por ter sido a morada da tocadora de pífanos Izabel Marques da Silva, a Zabé da Loca, a expedição é recebida por Josivane Caiano, conhecida como Josi, sua afilhada. Josi não apenas conduz a visita, mas também recebe os viajantes em sua casa de taipa, construída por ela mesma. Líder comunitária e empreendedora, ela é uma referência de empoderamento feminino na região e é quem nos leva até a gruta onde Zabé da Loca morava, sem luz, sem água encanada, sem porta de chave e trinca. Ela dormia de janelas abertas com vista para o céu do Cariri. E que céu.

Dona Lia prepara o tradicional cuscuz
Detalhe da Fazenda Carnaúba

O sagrado não vive dentro de uma igrejinha

“Cada terra é um manto sagrado, cheio de mistérios e histórias”, descreve o Manifesto

E o sagrado está no alto dos lajedos, formações geológicas compostas de grandes blocos de pedras planas e arredondadas. A paisagem é digna de ser chamada de miragem e são duas as experiências nela. A primeira é no lajedo do Pai Marinho, onde os viajantes almoçam um banquete e depois sobem as pedras para assistir ao pôr do sol, com direito a sanfoneiro e até um arrasta-pé.

A segunda experiência é no lajedo do Pai Mateus, em Cabaceiras, divisor de águas na viagem. Vale a máxima dos irmãos Buriti quando dizem: “Antes do Cariri, depois do Cariri”. Com aproximadamente 1,5 km², o lajedo abriga cerca de 100 grandes pedras arredondadas, que parecem flutuar, criando uma paisagem meio Salvador Dalí, meio Tarsila do Amaral. E é ali, bem ali, que o sagrado se apresenta, numa conexão com a natureza surreal. 

Inscrições rupestres na Pedra do Ingá

Cinema, Poesia e Mandacarus

A jornada ainda é em Cabaceiras, conhecida como a Roliúde Nordestina por ter sido cenário de mais de 50 produções cinematográficas, incluindo O Auto da Compadecida, de 2000. A cidade preserva um memorial cinematográfico e é encantadora, com céu de azul intenso, ruas típicas de uma cidade do interior (silenciosas e vazias), a igreja no alto da praça e casinhas com fachadas coloridas. Por toda rua, uma foto. E um sol que torra o viajante que vem da capital. Por sorte, entre uma rua e outra, você encontra aberto um cafezinho charmoso, que oferece bolo de milho cremoso e sorvete de massa de sabor café. Uma gota d’água no meio do deserto. É essa a sensação que a gente tem ao entrar pela portinha do estabelecimento. 

Para viver o Cariri é preciso sentir seus cheiros, provar seus sabores, descobrir suas artes e escutar suas músicas

Manu, filho de Ariano Suassuna, recebe visitantes na Fazenda Carnaúba
O casario colorido de Cabaceiras

Ariano, Armorial e a Eternidade da Terra

A última parada é em Taperoá, na Fazenda Carnaúba, lar de Ariano Suassuna e onde o escritor passou boa parte da sua infância. A propriedade, fundada no século XVIII, tornou-se um centro de produção de queijos de cabra premiados e um símbolo de resistência no semiárido paraibano.

Os visitantes são recebidos por Manu, filho de Ariano, e Dantas Vilar, filho de Manoel Vilar, pecuarista e primo de Ariano. E as histórias que eles têm a contar são tantas que a gente se perde na linha do tempo.

De um tempo manso em que as pessoas se sentavam nos alpendres de casa e proseavam. “Você já não é um. É a soma de todos os pedaços que se acumularam em sua passagem. Viajemos ao mundo dos outros, pois os outros é que definem parte do que somos”, entrega o Manifesto. Sentadinhos na sala da Fazenda Carnaúba, Manu divide manuscritos, roupas, objetos e figurinos de Suassuna, guardados pela casa. “O sertão é dentro da gente.” Essa frase, do escritor Guimarães Rosa, ressoa nesse encontro entre viajantes e Ariano. 

A expedição, como um todo, propõe um olhar para dentro do Brasil com interesse e paixão profundos. Por isso, “quem viaja não descobre. Aprende. Quem viaja transborda”.  Definitivamente.

Matéria publicada na edição 19 da Revista UNQUIET

Cordéis à venda no Memorial do Cuscuz
Ilustração: Antônio Tavares

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