Terra Ronca. Já ouviu falar dela? É provável que não. O nome peculiar dessa área, como se percebe, acolhe sujeito e verbo ‒ e prenuncia, como se verá, uma infinidade de predicados. Ainda assim, diferentemente de suas centenas de cavernas, Terra Ronca provoca pouca ressonância. Até mesmo ecoturistas experientes chegam a confundi-la com a Serra do Roncador. Um sonoro engano.
Roncador ergue-se no Mato Grosso. Já Terra Ronca está fincada em uma região remota no nordeste de Goiás, quase na divisa com a Bahia, em meio a uma intocada vegetação de Cerrado. Embora tenha sido soerguida à categoria de parque estadual ainda em 1989 (portanto, há 33 anos), a área, de 50 mil hectares (ou 1/3 da cidade de São Paulo), permanece quase um segredo de estado, um sigilo conspiratório.
No entanto, esse silêncio, interrompido apenas pelo ruído dos momentos mais revoltos dos rios subterrâneos ‒ daí, acredita-se, deriva o nome do lugar ‒, não durará para sempre. Terra Ronca é bonita demais para permanecer na letargia, em sono eterno.
Por enquanto, vir até aqui ainda é descobrir uma preciosidade. São mais de mil cavernas, sendo 300 mapeadas e 49 abertas para visitação, e muitas delas majestosas, como delirantes catedrais subterrâneas, seguidas por labirintos e outros salões gigantescos. Sete das 30 maiores do país estão aqui. Há também rios e riachos límpidos, providenciais para um banho nesses rincões de clima quente e seco. A água é tão pura e cristalina que se pode bebê-la, fresquinha, com as mãos em concha. Até quando? Eis a pergunta.
Façamos a ressalva: o Parque Estadual de Terra Ronca não está em vias de invasão do turismo maciço e indiscriminado. Longe disso. A protegê-lo, antes de tudo, ergue-se a barreira do isolamento, provocado pela distância e pelas dificuldades de acesso. Um obstáculo e tanto. Chegar até aqui requer (muito) tempo e (plena) disposição.
Isolamento e preservação
O ponto de partida mais viável é Brasília, a 400 km, sendo os últimos 45 percorridos na Rodovia BR-O45, em estrada de chão batido, mal conservada. Seguem-se outros 40 km, digamos, casca grossa, até a minúscula Guarani, cidadezinha de 5 mil habitantes, na antessala do parque. O percurso demanda ainda mais quilometragem para jogar as amarras em São Domingos, município que, embora tenha o dobro da população do vizinho e seja mais ajeitadinho, permanece um lugarejo. Todos os moradores de Terra Ronca, enfim, caberiam com folga no modesto Estádio do Canindé, em São Paulo.
“Esse é o momento certo para vir até a região”, avisa o paulista Guilber Hidaka, 38 anos. “Terra Ronca ainda é um lugar absolutamente genuíno, e não se sabe até quando isso vai durar.”
Hidaka já esteve duas vezes no parque goiano. Fotógrafo de primeiríssima (é o autor de alguns cliques desta reportagem) e dono de uma produtora de vídeo e conteúdo em São Paulo, ele aproveita as férias e folgas para praticar o ecoturismo, sempre a bordo de seu Mitsubishi 4×4. Nessas viagens, repletas de aventura, ele tem por companhia a mulher (Lucia Baeta, 36 anos, arquiteta e gestora de uma escola infantil), além dos três filhos do casal. São dois meninos e uma menina, de 3, 6 e 9 anos. Aventureiro experiente, ainda que muito família, Hidaka tem autoridade para dizer que Terra Ronca “ainda é genuína”, se comparada a outros destinos brasileiros do ecoturismo.
Essa autenticidade, bem entendido, impõe algumas restrições à modernidade. Em Terra Ronca, o buraco é mais embaixo ‒ com trocadilho. Por exemplo: nem pense em internet. Esqueça também os caixas eletrônicos e as máquinas de cartão de crédito e débito. Tudo por aqui funciona na base do dinheiro vivo. As acomodações são em pousadas singelas. Não imagine, ainda, que o parque estadual tenha portas ou porteiro e, vá lá, distribuição de mapas impressos detalhados, com indicações. Nada disso. Daí reza a sensatez de que só se entra nas entranhas de uma caverna sob a égide de um guia local autorizado.
Terra Ronca abriga mais de mil cavernas, sendo 300 mapeadas e 49 abertas à visitação
Um paraíso natural, um limbo de questões ambientais
O que talvez cause ainda mais estranheza é o fato de que, apesar de se constituir em uma unidade de conservação, o parque continue acolhendo povoados dentro de suas delimitações ‒ inclusive, pousadas. Isso acontece em virtude de questões fundiárias ainda não resolvidas. A rigor, a instituição do parque estadual não considerou conciliar a ocupação humana com a preservação ambiental, gerando conflitos. A desapropriação é um fantasma que percorre os labirintos de mentes e cavernas. Enquanto isso, na prática, velhos moradores continuam proprietários de suas terras.
É o caso de Ramiro Hilário dos Santos, 64 anos, o mais conhecido e reconhecido guia de Terra Ronca. Ele tem uma área de camping, próxima da Cachoeira das Palmeiras, uma queda-d’água com inacreditáveis águas azuladas. Além disso, em sua casa, de pau a pique, recebe visitantes para almoçar as refeições que a família prepara no fogão a lenha. Arroz com pequi. Feijão gordo. Galinhada. “É um dos melhores lugares para comer na região, ainda que simples”, indica Lucia Baeta, que também recomenda o Restaurante da Carla, no povoado de São João Evangelista.
O popular Ramiro é talvez o melhor exemplo da importância das cavernas na vida dos moradores. “Eu praticamente nasci em uma”, costuma dizer. Nessas cavidades de formação calcária, esculpidas há mais de 600 milhões de anos pelos rios subterrâneos, ele brincou de esconde-esconde na infância. Dentro de uma caverna, também namorou, participou de festas, se casou e batizou os quatro filhos. “Elas são a minha vida”, resume. De fato, Ramiro dá até nome científico a um peixe endêmico de uma das cavernas, o Ituglanis ramiroi, mais conhecido por bagrinho-de-caverna.
Entre outras utilidades, as cavernas de Terra Ronca são o ganha-pão dos moradores, pontos de celebração, redutos religiosos, memória dos antepassados e referência cultural. Constituem também, há mais de um século, objeto de estudo de espeleólogos brasileiros e estrangeiros, entre eles o francês Pierre Martin (1932-1986), um de seus principais divulgadores no meio científico. Elas funcionam ainda como eventual refúgio.
Uma história lendária relata que a Caverna Terra Ronca I serviu, no ano de 1925, como esconderijo de parte da população, assustada, quando da passagem pela região da Coluna Prestes (1924-1927), o movimento político-militar. A Caverna São Bernardo, por sua vez, acolheu militantes de esquerda, procurados pela ditadura no final dos anos 1960. Sobrevivem os restos de um fogão improvisado, construído por eles.
“O ideal é visitar uma caverna por dia”, instrui Guilber. “Mais do que isso se torna cansativo. Há um constante sobe e desce pelos caminhos internos, e alguns exigem ainda nadar ou andar dentro de rios com correntezas fortes.”
Esse bom senso permite também gastar o restante de cada dia para aproveitar outras atrações de Terra Ronca, como as diversas cachoeiras (não custa lembrar: a região é quente), as sortidas inscrições rupestres (obra de brasileiros nascidos 10 mil anos atrás) e as veredas. Entenda-se por esse nome enclaves do Cerrado que equivalem aos oásis no deserto. São ótimos para nadar. Têm água pura e vegetação mais vistosa. “Procure pelos buritis, aquelas palmeiras compridas”, sugere Lucia Baeta. “Onde tem buriti, tem vereda.” Uma das melhores, segundo ela, está “debaixo da Ponte de São Domingos”.
Clique aqui para ler a matéria na íntegra na edição 09 da Revista UNQUIET.