Cristalino Lodge
Benefício expirado
Basta o sol despontar no horizonte e logo começa a cantoria. São papagaios, tucanos, saíras e outros pássaros. Eles capricham nos trinados e garganteios, como que para celebrar mais um dia que raia na floresta amazônica.
Estou, desde as 5 e pouco da manhã, no alto de uma das duas torres de 50 metros do Cristalino Lodge esperando este momento: o amanhecer avistado de um ponto de observação de aves acima do dossel das árvores.
A bruma evapora do grande carpete verde do sul da Amazônia e encontra os tons alaranjados do céu. Além do deleite visual, o espetáculo arrepia pela sonoridade. É como se uma orquestra natural festejasse o nascer do sol na cidade de Alta Floresta, no norte do Mato Grosso, onde já foram avistadas 586 espécies de aves. “Entendeu por que dizem que este é o melhor lugar do Brasil para birdwatching?”, pergunta meu guia, o “passarinheiro” Jorge Lopes, enquanto me mostra o raro gavião-real pela lente teleobjetiva de 300 milímetros de sua câmera fotográfica. Ex-garimpeiro que se tornou ornitólogo autodidata e guia de grupos ali há 25 anos, Jorge dispara um assovio e fica estático por instantes. Parece difícil acreditar, mas um pássaro responde com canto idêntico. Ele sorri, troca a melodia, e outra ave interage. Nessas alturas mágicas no entorno do rio Cristalino, a sinfonia da passarinhada soa como a melhor trilha sonora para começar o dia.
Diante de tamanho êxtase, demora para lembrarmos que não tomamos café da manhã. Dezenas de fotos e muitos cantos de pássaros depois, descemos com nossos binóculos os 240 degraus da torre para pegar a trilha de volta, agora observando por baixo os espessos troncos das árvores de até 40 metros de altura. Diferentemente do caminho de ida, percorrido à noite sob a luz de lanternas e alguma adrenalina, a caminhada diurna por alguns daqueles 30 quilômetros de trilhas é solene, contemplativa, com feixes de luz solar dando à floresta um ambiente encantado. Nosso destino é a base do Cristalino Lodge, onde estou hospedado. Hotel de selva que virou referência internacional do casamento bem-sucedido de hospitalidade e conservacionismo, o lodge está incrustado em meio às Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) do Cristalino, as primeiras do gênero na Amazônia mato-grossense. São 11.399 hectares de floresta primária em uma área seis vezes maior do que o arquipélago de Fernando de Noronha, e uma vez e meia a área da ilha de Manhattan, em Nova York. Um território protegido onde é proibido mexer em qualquer árvore sem autorização, e onde as únicas atividades permitidas são o ecoturismo e a educação ambiental.
Já de volta às instalações do hotel para o merecido café da manhã antes dos outros passeios do dia, observo alguns dos cuidados ambientais que premiaram o Cristalino Lodge com reconhecimentos de instituições respeitadas como National Geographic, Condé Nast Traveler e Travel + Leisure. O amplo hall de convivência, onde há uma biblioteca com mais de 200 títulos, bar, sala de conferência para palestras, miniloja e adega de vinhos, é todo construído de madeira e vidro, garantindo bastante iluminação e ventilação natural – pois o calor no verão pode passar de 40º centígrados. Cada um dos 18 refinados bangalôs tem ao lado um círculo de bananeiras para tratamento biológico dos resíduos líquidos. E mais de 100 painéis solares garantem a luz e os ventiladores das suítes. Só não espere encontrar aqui televisão e ar condicionado, pois existe uma proposta clara de interagir com a natureza e curtir o ar puro. Há inclusive chuveiros privados e banheiras ao ar livre, bem decorados e com toques de requinte. Lençóis e amenidades são de primeira linha, e, por incrível que pareça, o wi-fi funciona bem nesses confins da mata.
A preocupação com o meio ambiente está na origem do Cristalino Lodge. Obra do pioneiro, o patriarca Ariosto Da Riva, que deixou o interior de São Paulo para fundar Alta Floresta, em 1976, numa época em que o governo estimulava a ocupação da Amazônia. Naquela época, sinal de progresso era desmatar para produzir, e plantou-se muito cacau, guaraná e frutos nativos. Depois vieram os ciclos do garimpo, dos cortes de árvores para vender madeira ou abrir pastos para criadores de gado. Até que Vitória Da Riva, filha de Ariosto, começou a mudar essa história. “Quando visitei o lugar, me encantei, entendi o valor da floresta em pé e passei a militar para que ela não fosse derrubada”, conta Vitória, hoje com 75 anos. Em 1990, Vitória comprou um grande lote à beira do rio Cristalino, de águas escuras e limpas, e começou a construir os primeiros alojamentos, inicialmente rústicos. Foi em 1997 que ela, o marido, Edson, e os cinco filhos decidiram mudar de mala e cuia para Mato Grosso. “Lembro-me de chorar quando parti, com o Alexandre no colo”, conta ela, emocionada. “A partir dali, fiz do Cristalino a minha vida.”
A criação do ecolodge nos anos 1990, quando pouco se falava em sustentabilidade no Brasil, fez de Vitória uma pioneira respeitada no mundo todo. “Em que outro lugar do planeta se pode encontrar em uma mesma região seis tipos de vegetação diferente e preservadas como aqui?”, costuma perguntar. O Cristalino Lodge nasceu com uma proposta ecológica, e os filhos de Vitória acabaram se envolvendo no negócio: “A Adriana é a arquiteta de nossas instalações, o Edinho virou meu parceiro nas questões sustentáveis, o Alexandre encabeça os negócios”. No comando do hotel ao lado da mãe, Alex Da Riva, 42, também tem sua trajetória ligada ao Cristalino Lodge desde criança. “Lembro das primeiras viagens em família, que duravam três dias em uma perua Chevrolet Veraneio”, conta. “Passei a infância brincando com borboletas e não me esqueço da primeira vez que me surpreendi, aos 9 anos, com o tamanho da castanheira da nossa terra.”
A reserva do Cristalino tem 11.399 hectares de floresta. É uma área seis vezes maior que Fernando de Noronha.
As borboletas e a mesma castanheira da memória afetiva de Alex continuam fascinando os viajantes mais de três décadas depois. “Foram catalogadas mais de 1.500 espécies de borboletas no Cristalino, o que faz dele o melhor lugar para minha pesquisa”, diz a bióloga Luísa Lima e Mota, doutoranda pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que morou por um ano na reserva. Em 2019, Luísa publicou um artigo científico anunciando a descoberta de um novo gênero e espécie de borboleta, a Cristalinaia vitoria, batizada em homenagem à criadora do hotel e das RPPNs que abrigam o lodge. São muitas as espécies raras da fauna e da flora do lugar, e mais de 100 pesquisas científicas foram produzidas aqui. Tive um exemplo dessa diversidade no dia em que o guia Jorge, o passarinheiro do início deste texto, me levou para fazer a trilha da Castanheira. Como se não bastasse o alumbramento de se deparar com a árvore de 40 metros de altura e estimados 800 anos de existência, que precisa de 11 pessoas para ser abraçada, avistei também o raro macaco-aranha-de-cara-branca, que só existe nessa região.
Macacos há aos montes no Cristalino. Tomei um baita susto ao ouvir pela primeira vez o rugido aterrorizante do bugio, que mais parece o de uma onça-pintada brava, justo quando eu desfrutava de um banho tranquilo no rio Cristalino (antes da sesta que virou rotina nas minhas cinco tardes no hotel). As onças passaram a ser observadas com alguma frequência pelos guias e funcionários do lodge nos últimos anos.
Os pesquisadores de felinos espalharam câmeras pela mata e volta e meia flagram os bichanos pelo pedaço – uma delas, figurinha corriqueira nas imagens, já ganhou até o apelido de “Igarapé”. “Recentemente vimos também uma suçuarana [onça-parda, menor que a pintada]”, conta Alex. “Trata-se de um sinal de como o ambiente é preservado nesse ponto da Amazônia.” Na trilha das Rochas avistei uma dezena de queixadas, ou porcos-do-mato. Dá para vê-los do alto de uma pequena torre, enquanto se alimentam no barreiro, fazendo um barulho estridente de rilhar dos dentes.
Depois das torres de observação, meu lugar favorito para avistar a vida selvagem foi o próprio rio Cristalino que dá nome ao hotel, às reservas e ao Parque Estadual vizinho (também criado com participação ativa de Vitória Da Riva). Na minha saída para remar um caiaque por duas horas, surpreendi um casal de araras-azuis e amarelas voando sobre minha cabeça, vários martins-pescadores dando mergulhos na linha d’água em busca do peixe do dia, biguás acompanhando o caiaque como se fossem patos – e até ariranhas e uma anta! Mesmo quem não quer fazer o esforço físico de remar pode avistar a fauna aquática com facilidade. Basta relaxar no píer flutuante na frente do hotel, decorado por enormes ombrelones e espreguiçadeiras de madeira. No mínimo alguns dos muitos pássaros do Cristalino vêm fazer uma visita – quando não um macaco, um jacaré ou uma capivara.
É este, justamente, o diferencial do Cristalino em relação a outros lugares da Amazônia, este santuário latino ainda tão pouco conhecido pelos brasileiros: a facilidade para observar a vida nativa da maior floresta tropical do planeta, sem fazer muito esforço. O fato de os rios não sofrerem oscilações no nível da superfície, como acontece nas principais reservas dos estados do Amazonas e do Pará, facilita para que seja possível passear ali praticamente o ano inteiro – em especial, de abril a janeiro, para evitar as chuvas de fevereiro e março. Os seis meses em que o Cristalino Lodge ficou fechado em função da pandemia, entre março e setembro de 2020, contribuíram para que as trilhas ganhassem algum tempo de descanso.
CRISTALINO LODGE
• Energia e aquecimento solar em todos os quartos do hotel.
• Tratamento de esgotos usando conceitos da permacultura.
• Arquitetura favorável à circulação de ar, evitando o uso de ar condicionado.
• Uso de produtos de limpeza biodegradáveis.
• Limitação no número de grupos excursionando pela floresta, reduzindo o impacto nas trilhas.
• Número limitado de acomodações com o objetivo de evitar o impacto causado pelo turismo de massa.
• Uso de garrafas de alumínio, oferecidas aos hóspedes para uso nas trilhas e passeios, com possibilidade de reabastecimento no bebedouro situado no bar do hotel.
• Proibição de alimentar a vida selvagem para não influenciar a capacidade dos animais obterem alimento, evitando assim a dependência humana.
• Administração de uma área de reserva florestal particular de cerca de 12 mil hectares.
• Apoio, por meio da Fundação Cristalino, a iniciativas regionais de educação ambiental, desenvolvimento humano, pesquisa e criação de alternativas econômicas.
• O programa de educação Escola da Amazônia traz estudantes das escolas da região para atividades de educação ambiental na floresta.
Acesse o site do projeto:
http://cristalinolodge.com.br/pt/conservation-education/cristalino-foundation/
Sem visitantes, os bichos que já viviam perto do hotel ficaram ainda mais à vontade. Os tempos difíceis para a pequena comunidade local de 100 famílias foram enfrentados com algumas iniciativas solidárias da fundação Cristalino, criada pela família Da Riva para colaborar com o lugar: uma campanha com os hóspedes e amigos para arrecadar cestas básicas rendeu 3 toneladas de material no valor de R$ 150 mil, além da venda de quatro belas imagens feitas no Cristalino pelo fotógrafo João Paulo Krajewski.
Isolado e arejado como foi concebido, o Cristalino Lodge precisou de poucas adaptações para se adequar aos novos protocolos sanitários. Pouca gente chega ali: basicamente os viajantes que se dispõem a voar até Cuiabá, depois para Alta Floresta, e então mais uma hora por terra. Outra meia-hora de barco a motor subindo o rio e… pronto! Você chegou.
O tempo livre para passear ou descansar nas espreguiçadeiras dos deques em volta dos bangalôs segue o mesmo de sempre: lento, ao som e no ritmo da natureza exuberante de Mato Grosso – em meio à contemplação do céu, do rio, das aves, da vida.