Ficção ou não ficção? Todo escritor tem esses dois caminhos para contar uma história, e o mercado está habituado a diferenciá-los, assim como os leitores. Para colocar pimenta no caldo da literatura comparada, nomeou-se agora um terceiro gênero, a autoficção, em que o autor é o narrador, coloca-se dentro da prosa, mas não assume o aspecto biográfico. Seria uma autobiografia ficcional.
Quando se aponta para a autoficção, de imediato vem um nome, seu representante mais ativo: o norueguês Karl Ove Knausgård, 58 anos, na moda dentro e fora dos países escandinavos, autor da saga Min Kamp (Minha Luta), dividida em seis volumes, escritos entre 2009 e 2011, e de Outono, Inverno, Primavera e Verão, escritos em 2015 e 2016.
Apesar de morar no meio do nada, entre fiordes da Noruega e Suécia, o que fez desse escritor compulsivo (publicado no Brasil pela Companhia das Letras) ‒ fumante que passava o dia num escritório isolado cercado por cinzeiros e cafés ‒ escrever uma saga de 3,5 mil páginas sobre ele, sua família e a paisagem gelada, quase parada, de uma região fora da rota turística mais popular? E como ficou na moda?
Na sua obra, não se veem amores proibidos, triângulos amorosos, grandes ações, aventuras épicas, perseguições, suspense. Nem arrojos literários inovadores, trafegando entre James Joyce, Guimarães Rosa e Foster Wallace. Ao contrário. É entediante, simples, como o branco de uma geleira. Com uma penca de filhos e três casamentos, é excessivamente descritivo e, por vezes, deprimente. Até demoramos para “entrar” na obra. De espetacular, a aurora boreal do Círculo Polar, onde vai morar por um tempo.
Já foi comparado a Proust. Ele mesmo assume que, sim, Proust foi devorado nos seus 20 anos e os primeiros dois romances, ambos premiados, são cópias das quais ele se envergonha. Mas admite que depois passou a fazer uma literatura que chama de “anti-Proust”: seca, crua, direta. Disse à BBC que, ao contrário do colega francês, cujo estilo é inegavelmente construído e meticulosamente calculado, os livros da série Minha Luta são ultrarrealistas e esmiúçam todos os aspectos da vida do escritor, especialmente as frustrações, as mais embaraçosas e comprometedoras.
Ele escreve com tamanha sinceridade e transparência, sem nenhuma complacência, que acabamos nos identificando e seduzidos a conta-gotas. Ou como apontou a revista New Republic, “ler Minha Luta é como abrir o diário de alguém e encontrar os próprios segredos”.
Muitos leitores ficam curiosos, mas é quase impossível distinguir o real da invenção numa obra literária. De certa maneira, um autor ou autora sempre parte de experiências pessoais para escrever seus personagens ficcionais. A personagem feminina de um autor masculino pode ser sua visão do feminino, construída por observação, pesquisa, mas também uma porção feminina que há no homem. E vice-versa. Virginia Woolf experimentou narrar através de dois sexos em Orlando. Considerado semibiográfico, já que é baseado numa amante da autora, o romance conta o espanto de um jovem inglês, Orlando, que de um dia para o outro, numa viagem à Turquia, acorda no hotel, transformado em mulher. Orlando explora seu novo corpo diante do espelho e reaprende a viver.
Gustav Flaubert, o pai do romance moderno, experimenta em Madame Bovary o tédio de uma mulher do século XIX, que almeja liberdade, mas deve cumprir o papel de esposa burguesa fiel a um médico querido pela comunidade. Emma Bovary não resiste à tentação e acaba se seduzindo pela vida hedonista da aristocracia decadente. O romance causou escândalo, o autor foi processado por indecência. Queriam saber quem ele retratava, até soltar esta famosa frase que marcou a literatura: “Emma Bovary c’est moi”.
O que Machado de Assis tem de Capitu? O que do desocupado herdeiro Brás Cubas tem o autor? O que Dostoiévski tem do astuto criminoso Raskolnikóv? O que grandes personagens da literatura, como Gastby, Holden Caufield, Riobaldo, têm de real?
Está aí uma razão pela qual se dividiu a literatura em ficção e não-ficção, um destaque protocolar que está longe de ser verdadeiro. Até porque em muita não-ficção e autobiografia há invenção, já que o ato de narrar transforma a realidade numa interpretação.
A autoficção tem muitos adeptos. Michel Houllebecq e Emmanuel Carrère são autores que narram sobre outras pessoas e eventualmente aparecem na história. Assim como os brasileiros Ricardo Lísias, que em Divórcio escreveu sobre uma separação que pode ser a sua, Marcelo Mirisola, João Paulo Cuenca, que depois de ter seu documento perdido descobriu que foi dado como morto pelos arquivos do estado. Julián Fuks escreveu sobre o irmão adotado em A Resistência, e Paulo Scott sobre o racismo e as diferenças vividas entre ele e o irmão de pele mais escura, em Marrom e Amarelo.
Mas não existe maior símbolo dessa nova via do que Karl Ove. Suas influências são muitas e se destacam Flaubert, Proust e Joyce. Ele confessa que sempre escreve mais do que deveria e sem medir as consequências, o que aponta como um de seus defeitos. Em Minha Luta 4 ‒ Uma Temporada no Escuro, confessa curiosamente que lia Jardim do Éden, de Hemingway, para buscar um estilo e uma linguagem, atrás de uma síntese entre opostos, o lirismo de Proust e o pragmatismo de Hemingway.
Apesar de Minha Luta ser o nome da indigesta obra de doutrinação de Hitler, ele diz que a saga se refere à sua luta. Escreveu no quarto volume: “Minha orientação política era de extrema esquerda, a ponto de quase cruzar a fronteira rumo ao anarquismo, eu detestava as unanimidades e os estereótipos e, como todos os outros jovens da cena alternativa de Kristiansand, desprezava o cristianismo e todos os imbecis que acreditavam naquela doutrina e frequentavam encontros com pastores carismáticos e estúpidos”.
No primeiro volume, Minha Luta 1 – A Morte do Pai, Karl Ove jovem revive os anos 1980 dançando The Clash em bebedeiras. Além de descobertas sexuais, se debruça sobre o pai autoritário, que boicotava seu lado mais sensível e o reprimia quando dava flores à mãe, numa jornada destrutiva que arruinou a família.
Minha Luta 2 ‒ Um Outro Amor mostra a rotina entediante de um casamento decadente, que entrou numa crise contagiosa, festinhas infantis intermináveis, férias de verão em que tudo dá errado. O casal se separa, ele deixa Oslo e se muda para a Suécia, onde começa uma nova vida. Lá reencontra Linda, poeta, antiga paixão… Como conciliar a paternidade com a dureza das ambições literárias? Pai de três filhos, ele narra em detalhes sua luta para escrever, das agruras com um novo romance na edícula da casa em meio a uma rotina tumultuada e de obrigações paternas, fraldas, separar brigas.
Minha Luta 3 ‒ A Ilha da Infância é dedicado à infância do autor, que tem medo do barulho da água nos canos, de assombração, do cachorro do vizinho, de raposas e, sobretudo, do pai, uma figura autoritária alcoólatra que sempre volta à sua narrativa, em contraste com a delicada mãe, com descrições infindáveis e digressões com as quais nos acostumamos. E é exatamente entre a narrativa detalhista de uma rotina banal e flashbacks que se escondem alguns dos lances geniais do autor, pegando o leitor de surpresa.
Já em Minha Luta 4 – Uma Temporada no Escuro, fica claro que seus livros podem ser lidos de forma independente, que ele não segue uma linha cronológica. Aqui, ele tem 18 anos e se muda para o norte da Noruega, para dar aulas a adolescentes, por quem morre de tesão. Da sua janela, um fiorde e barcos. Mas chegam o inverno polar, a escuridão, as noites longas, a bebedeira e a memória do pai abusivo.
Em Minha Luta 5 – A Descoberta da Escrita, mais uma vez reaparecem seus anos na Universidade de Bergen como estudante de literatura, com as consequentes frustrações de quem tem bloqueios literários, conflitos e inseguranças juvenis. Retoma bebedeiras, brigas, fracassos amorosos, o rock dos anos 1980.
Minha Luta 6 – O Fim talvez seja a obra mais complexa. O fecho inclusive traz um ensaio sobre estética, linguagem, Hitler e até questões identitárias. O livro “é feito do amor de um homem por sua família e sua obsessão pela vida solitária da escrita, com a trama e a urdidura dessas paixões contraditórias às vezes se enredando uma na outra”, escreveu Melissa Katsoulis, do Times.
Karl Ove sujeita amigos, amores, familiares, e o resultado não poderia ser outro: por expor a vida de outros sem censura, ele recebeu ameaças de processos, até afirmar, enfim, que seus livros são pura ficção. Puro papo furado.
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