“A que horas será o seu banho?” Foi com essa inesperada pergunta, feita no check-in do Asadaya, em Kanazawa, que entendi que os ryokans eram mesmo hospedagens diferentes daquelas com as quais eu estava acostumada. Eles são estabelecimentos em geral familiares e administrados pelo mesmo clã por diversas gerações, que têm a tradição japonesa mais arraigada como base fundamental.
O conceito de hospedagem, cujo primeiro registro remonta a mais de 1,3 mil anos, foi disseminado no Japão durante o período Edo (entre 1603 e 1868), quando o país atravessou uma era de paz, após uma guerra civil que havia durado séculos. Foi quando viajar pelo território japonês se tornou seguro e começaram a surgir os primeiros ryokans, com a finalidade de receber os viajantes da forma mais tradicional e despretensiosa possível, como numa autêntica residência nipônica. Isso incluía, e perdura até hoje, hospedar-se em acomodações com piso de tatame, dormir sobre futons e participar de diversos rituais propostos no lugar, como o uso de quimonos e a prática das refeições típicas. Muitos ryokans são seculares e diversos estão instalados em estações termais, chamadas de onsen, confirmando a vocação de refúgios de bem-estar para o corpo e para o espírito.
Tendo isso em mente, não foi preciso mais do que alguns instantes para perceber que a minha primeira incursão teria todas as praxes do conceito de ryokan. A recepcionista vestia um deslumbrante quimono de seda, chinelos de madeira com meias repartidas no dedão e um coque impecável. Entendia muito pouco (ou quase nada) do que eu falava em inglês. Ia e voltava por uma portinha secreta, com um texto ensaiado e uma ficha na mão. A estadia seria de apenas uma noite, mas o formulário trazia muitas perguntas. Algumas para as quais eu ainda não tinha a resposta: “Western breakfast?”, “light futon?”, “breakfast time?”. E a mais importante: o horário do banho.
Na recepção, uma antessala com um jardim zen no centro, eu tentava decifrar o que aconteceria na sequência, enquanto bebericava chá verde. Depois de mais uns tropeços na comunicação, fui levada a um quarto absolutamente vazio, o chão inteiramente revestido de tatame, que me dava poucas dicas.
O Asadaya segue o padrão mais habitual de ryokan: pequeno e refinado, com serviço discreto, delicado e devoto. São apenas quatro quartos, e quase 400 anos de história. Uma funcionária com funções de “mordomo” fica responsável pelo cuidado com os hóspedes desde o momento do check-in até a saída.
A minha era Yumi. Como tampouco falava inglês, ela me apontou o armário do quarto. Dentro dele havia uma yukata, o quimono informal feito de algodão, que me ajudou a vestir da maneira correta. Depois, ela me conduziu para o já mais que esperado banho, um capítulo à parte. Onsen é o nome usado também para os espaços onde se tomam os banhos termais nos ryokans. Usualmente divididos por gênero, quando coletivos, eles podem ser salas completamente reservadas para um hóspede por vez, caso do Asadaya. É quase uma cerimônia, cheia de protocolos e com uma sequência higiênica: totalmente nu, o frequentador deve se lavar por completo, usando o auxílio de uma pequena toalhinha, antes de entrar na banheira relaxante. A toalhinha vai enrolada na cabeça e os cabelos jamais devem tocar a água.
E lá fui eu, seguindo o passo a passo e aproveitando tudo. O xampu maravilhoso (usado antes ou depois da imersão, e nunca durante!), a água quentinha, o momento de silêncio total. Trata-se de uma oportunidade de entregar o corpo ao relaxamento completo e esvaziar a mente. A temperatura do banho e a tranquilidade do ambiente vão aos poucos criando o relaxamento necessário depois de um dia de viagem ou passeio. É um momento real de autocuidado, sem preocupações e interrupções.
Depois do banho mais especial da minha vida, vesti minha yukata e voltei para o meu quarto. Uma mesa de jantar muito baixa, bem próxima do chão, ocupava o centro do tatame. Começava outro ritual: o fabuloso jantar kaiseki ‒ refeições que remetem aos banquetes da corte em Quioto, entre dez e 12 pratos, de diferentes preparações e sabores. A apresentação é sofisticadíssima, tudo lindo. Porcelanas locais (às vezes antigas, com mais de 200 anos, como no Asadaya), sprays borrifados sobre as folhas para representar o orvalho, folhas de ouro e os mais frescos peixes, os mais perfeitos legumes, as mais redondas ovas, os mais rosados camarões. Uma experiência multissensorial, que acaba com um convite para uma xícara de chá na antessala do quarto, enquanto Yumi prepara nossos futons.
Voltei com as camas à japonesa preparadas. Deliciosos futons de pena de ganso e um relógio-despertador ao lado do travesseiro. O relógio marcava 20h30. E eu estava pronta para dormir, feliz.
Era a minha primeira viagem ao Japão e o Asadaya foi o meu primeiro ryokan, dos três nos quais me hospedaria. Trabalho com viagens e meu parceiro local tentou me dissuadir da ideia: “Cinco noites consecutivas em ryokans é muito”. Confesso que, depois dessa experiência, saí achando pouco.
Mas entendo o ponto: parte do propósito de um ryokan é aproveitar a hospedagem em si. Muitos – como o Asadaya – funcionam com toque de recolher. Não é a melhor opção para cidades grandes ou lugares visitados pela primeira vez. Porém minha continuação de roteiro tinha muito bucolismo, e em Kaga-Onsen, uma estação de águas perto do Mar do Japão, e nas montanhas de Takayama, os ryokans faziam todo o sentido. Deixei o Asadaya sob a despedida típica: com baldes d’água jogados atrás de mim, uma tradição na partida dos hóspedes.
Kayotei: relax na floresta
Meu próximo destino seria a região termal da floresta de Kaga-Onsen, especificamente o ryokan Kayotei. Mais contemporâneo, tem dez quartos e está totalmente conectado à natureza, com banheiras privativas no terraço dos aposentos e piscinas de pedra para os banhos.
Diferentemente da primeira experiência, no Kayotei o banho não precisa de hora marcada e acontece em duas piscinas, divididas por gênero, que se alternam para que todos possam experimentar a vista da floresta ou o banho na gruta. As banheiras se voltam para o verde do bosque que margeia a propriedade. Um riacho corre entre as árvores, reproduzindo a mais perfeita trilha sonora para o momento. A região de Kaga é famosa por suas águas, uma estação termal com mais de 1,3 mil anos. Suas hot springs atraem visitantes de todo o Japão em busca dos predicados de seus onsens, com águas que saem da fonte a até 47⁰ C – e chegam às banheiras do Kayotei na mais perfeita temperatura, para um banho cercado de paz e natureza. Sem pressa, visto a minha nova yukata, aproveitando os produtos do vestiário, todos perfumados na medida certa para completar o ritual da noite.
Wa-no-Sato: vivência rural
Estava ansiosa pela minha última descoberta nesse roteiro, o Wa-no-Sato, um ryokan rural que prometia novas surpresas. Nele, pequenos cottages de telhado de palha se espalham ao longo de um rio verdinho, aos pés dos alpes japoneses, perto da cidade de Takayama. No lobby, uma cênica chaleira de ferro pendurada é aquecida por um fogo de chão ao longo do dia. A dona do Wa-no-Sato me recebe com um caderninho e uma dúzia de palavras em inglês, com perguntas decoradas e acenos nas respostas. Na hora do jantar (estamos numa região famosa pelo gado, então mais carne aqui), ela passa de mesa em mesa, lendo com dificuldade perguntas como “where are you from?”, “how many days in Japan?”. Ela não disfarça o espanto ao ouvir as respostas: “Brazil” e “fifteen days”. Muito pouco para vir de tão longe… Eu concordo e prometo voltar em breve. E assim o fiz.
Réveillon típico
É noite de Ano-Novo e para mim a “virada” aconteceria em outro ryokan, dessa vez no vilarejo de Kurashiki, na elegante hospedaria de mesmo nome, que ocupa um antigo armazém de algodão (kura), no centro histórico, idilicamente cortado por canais, por onde navegavam barcas de tecido cru.
O Kurashiki tem toques ocidentais bem-vindos, como camas um pouco mais altas e salas de jantar privativas, mas em cômodos com muita história, alguns com 250 anos. O sense of place está lá, definitivamente, e se fez ainda mais presente na ceia de Réveillon, que saboreei devidamente trajada com meu quimono de festa. Um banquete kaiseki com todas as especialidades invernais, como cítricos, mexilhões, castanhas e o imperdível shabu-shabu, um cozido de carnes e vegetais. A memorável ceia acabou cedo. Fui dormir, respeitando o modus operandi dos ryokans, mas coloquei o despertador para as 23 horas.
Passei a meia-noite na rua, ou melhor, no templo local, numa celebração singela e alegre, com árvores de desejos, 12 badaladas de sinos e mochi balls. As grudentas bolas de arroz glutinoso são consumidas no Ano-Novo desde o século VIII como uma superstição para fortalecer dentes e ossos. Lanternas ao céu, pedidos devidamente encaminhados para o ano novo e me despedi do Kurashiki com um café da manhã inesquecível. Nos potinhos, peixes grelhados e crus ganhavam a companhia de caldos, em pequenos fogareiros, e iguarias repletas de sabores e significados para o ano que se iniciava. Mais um carinho para o corpo, dessa vez para o paladar, entre tantos outros que essa experiência de hospedagem, tão genuína e cheia de significados e cultura, é capaz de proporcionar. Terminei a jornada observando o voo das garças no Parque Korakuen, em Okayama, outra tradição do primeiro dia do ano, e reforcei meu desejo: poder voltar muitas vezes ao que considero o país mais incrível do mundo – e sempre com hospedagem nos ryokans para os rituais de bem-estar.
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