A ideia de cruzar a lendária Passagem Noroeste, que fica acima do norte do Canadá, nasceu em 2010, depois de Igor Bely e eu termos cruzado o Oceano Pacífico. Esse caminho foi tentado inúmeras vezes nos dois séculos anteriores, mas as investidas sempre foram malsucedidas.
A Inglaterra precisava encontrar um caminho comercial para seus navios alcançarem a Ásia, já que os portugueses e espanhóis dominavam as rotas do Índico e do Pacífico, respectivamente. Mas o que a impediu naquela época foi o gelo, que bloqueava todo o caminho, formado por um conjunto de grandes ilhas, que se localizam ao norte do Canadá.
O primeiro homem que completou a travessia foi Roald Amundsen, em 1906. Esse grande explorador norueguês precisou de três verões para vencer o gelo com a sua embarcação de 21 m, batizada de Gjoa. Foi ele também que alcançou a pé pela primeira vez o Polo Sul.
O nosso projeto precisou de muitos anos para amadurecer e, nesse meio-tempo, ainda cruzamos o Oceano Atlântico. Em 2018, tomamos a decisão de retomar a ideia inicial. Nessa época, eu já vinha pesquisando qual barco seria ideal para a travessia. Acabamos comprando um catamarã moderno, construído com fibra de carbono e muita tecnologia para ser leve e forte, já que a região tem pouco vento no verão.
Sabíamos que iríamos encontrar condições difíceis para navegar no Oceano Ártico, pois no verão ainda há muito gelo e uma meteorologia instável. A janela de oportunidades é sempre bem curta, por isso precisávamos de um barco rápido no vento fraco.
Antes de partir
No início de junho, viajei para Seattle, nos EUA, juntamente com a equipe de filmagem, para encontrar o Igor no estaleiro, em Port Townsend, próximo da divisa com o Canadá. O nosso propósito era fazer um filme sobre as mudanças climáticas na Calota Polar, a região mais sensível acima do Círculo Polar Ártico.
Passamos alguns dias fazendo os últimos ajustes e testes com o Igloo (o nome do nosso catamarã) e logo em seguida começamos uma grande viagem por terra: rebocar o barco por quase 5 mil quilômetros, até Tuktoyaktuk, com um antigo motorhome.
Foram 14 dias de estradas maravilhosas, que inicialmente cruzavam a Columbia Britânica, em seguida o Yukon e, finalmente, os Territórios do Noroeste. Os últimos mil quilômetros foram percorridos na lendária Dempster Highway, uma remota estrada de terra, com quase nenhuma assistência.
A nossa estadia em Tuktoyaktuk foi muito mais longa do que imaginamos, pois o verão estava atrasado em três semanas, o que nos deixou muito apreensivos. Havíamos planejado uma viagem de 90 dias, esperando encontrar muitos sem vento, mas acabamos perdendo 20 dias em nosso cronograma, tempo que esperamos para que o gelo abrisse na Baía de Tuk.
Desafios no mar
Partimos de Tuk em 20 de julho, depois de uma longa espera, sofrendo os efeitos de um período de muito calor e com uma profusão de insetos famintos. Logo de cara, tínhamos pela frente um enorme desafio, que era cruzar uma grande área de gelo que estava estacionada em frente ao delta do Rio Mackenzie, 100 milhas mar afora.
Vivemos momentos muito difíceis no segundo dia, quando entramos em um labirinto de gelo, que logo em seguida foi tomado por uma forte neblina e nos deixou com poucas condições de prosseguir. Velejamos quase às cegas por mais de 18 horas. Finalmente, quando a neblina se dissipou, pudemos ter uma ideia de qual direção velejar.
Tivemos a opção de parar em comunidades inuítes (membros da nação indígena esquimó) ao longo do caminho, o que ajudou na logística de documentação. Isso porque o Alberto Aldrich e o Ale Socci, nossos cinegrafistas, sempre estavam nos esperando para documentar as chegadas, as partidas e as nossas estadias. Passamos por Paulatuk, Kugluktuk, Cambridge Bay, Gjoa Haven e Artic Bay.
Viajar pelo Oceano Ártico não foi apenas um desafio náutico. Foi uma experiência antropológica, pois pudemos nos relacionar com a população das comunidades que vivem em uma região do planeta de condições muito extremas. Inúmeras vezes, me perguntei por que alguém se submete a viver em um lugar onde não há luz do Sol por dois meses durante o ano, as temperaturas beiram os -50 ºC, não existe vegetação e, se você quiser sair de lá, precisará de um pequeno avião, que nem sempre tem condições de pouso.
Para um habitante de um país tropical como o Brasil, é difícil entender a vida no Ártico, mas ela tem a sua beleza, mesmo sendo muito monótona em grande parte do nosso roteiro. A paisagem foi ficando interessante à medida que avançávamos em direção à Ilha de Baffin, onde apareceram os primeiros fiordes e montanhas. A vida animal também surgiu quando nos aproximamos do Oceano Atlântico. Pudemos observar baleias belugas, bowheads, narvais, ursos-polares, musk oxen (uma espécie de búfalo do Ártico) e muitas aves migratórias.
O que ajudou a quebrar a monotonia da paisagem foi a luz, já que por mais de dois meses tivemos maravilhosos crepúsculos, que tingiam com matizes de laranja os vastos horizontes.
Sofremos um pouco com as baixas temperaturas, pois ficamos expostos na maior parte do tempo, e nos dias de mais vento a temperatura era negativa. Sem nenhuma dúvida, foi a viagem mais desafiadora de todas de que já participei.
O canto das belugas
No penúltimo dia de viagem, fomos premiados com a presença de mais de 100 belugas, e filhotes, em uma pequena baía, chamada Leopold. Elas se aproximaram do nosso barco durante uma noite e, de muito perto, pudemos ouvir a sua comunicação e a sua respiração. Imagine estar ancorado em um lugar remoto, a 74 graus norte, e se ver cercado por belugas curiosas, em uma intensa comunicação entre si. O que elas falavam? Difícil dizer. Depois dessa experiência, eu posso afirmar que algo mudou dentro de mim.
Partimos de Leopold Bay com um mar de cor esverdeada, que contrastava com uma densa névoa cinza. O vento zunia pelos estais do Igloo, que saltava as ondas cavadas do Canal Parry. Depois de algumas horas, pudemos observar a Ilha de Devon, que se estende em direção ao Polo Norte. Na metade do dia, começou a nevar muito forte e o vento foi embora. Ele só voltou algum tempo depois, quando Igor e eu, completamente congelados, passamos a velejar com bastante vento favorável, fazendo o Igloo descer jacarés vertiginosos no escuro da noite.
Na manhã seguinte, avistamos um lugar muito desejado: Artic Bay, o destino final da viagem. Terminamos a jornada cansados, mas completamente realizados por termos cruzado a Passagem Noroeste em um barco sem motor e sem cabine. Agora é tempo de trabalhar na edição do filme e do livro fotográfico, que serão lançados em 2023.
Matéria publicada na edição 09 da Revista UNQUIET.