Aman Tokyo
Benefício expirado
O Japão concentra hoje algumas das mais notáveis coleções de peças contemporâneas do mundo
Imagine um lugar onde museus enormes, com estruturas espetaculares, funcionam ao ar livre, em cenários magníficos – ilhas e montanhas vulcânicas. Um local onde obras e instalações de arte contemporânea dividem espaço com vilas minúsculas, quase secretas, guardiãs da cultura de um povo admirado pela gentileza, pela busca da perfeição no servir, pelo respeito e pelo senso de coletivo. Em outras palavras: poucos países podem competir com o Japão em matéria de instituições culturais a céu aberto.
A relação do japonês com a arte moderna ocidental foi reforçada após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o arquipélago experimentou o desenvolvimento econômico mais acelerado do século 20. Desde a década de 1950, colecionadores japoneses são presença constante e celebrada nos leilões, mostras e galerias. Como resultado, o Japão concentra no momento algumas das coleções mais notáveis do mundo.
Curioso: obras de ultravanguarda estão fincadas em ilhas onde moram pescadores
Há dois motivos para isso. O primeiro é a relação com o espaço. Ele é diminuto no dia a dia das metrópoles, e espartano fora delas. Por isso, o japonês adora atividades outdoor. A segunda razão é o respeito ao outro e ao bem-estar de todos. Essa atitude, arraigada na alma de cada cidadão, talvez explique a rápida transformação do Japão em potência mundial. Como arte e cultura são essenciais ao desenvolvimento dos povos, elas precisam estar disponíveis para todos. Ignore, portanto, o lamentável e isolado episódio do excêntrico milionário que exigiu em testamento a cremação do quadro O Retrato do Dr. Gachet, de Van Gogh. No Japão, coleções, públicas ou particulares, aguardam sua visita. Vamos nos concentrar aqui na arte contemporânea espalhada pelas ilhas do mar interno de Seto.
As ilhas Seto
O bilionário Soichiro Fukutake, herdeiro da Fukutake Publishing, especializada em ensino a distância, é quem comanda o complexo artístico de Benesse. Após a morte do pai, em 1986, ele voltou à vila de Okayama, onde nasceu há 75 anos. Foi tocar pessoalmente a construção de um parque infantil na vizinha ilha de Naoshima. E ali conheceu de perto a história da região, degradada após anos de exploração industrial primitiva.
O antigo modo de viver, mais próximo da atitude modesta que o japonês mantinha antes do surgimento das supermetrópoles, fez com que Fukutake colocasse em xeque seus valores. Ele comprovou: a modernização se conectava diretamente à urbanização. Esta, por sua vez, destruía a cultura e a história regionais, na tentativa de criar o “novo”. Para comemorar sua transformação pessoal, rebatizou de vez a Fukutake Publishing de Benesse – “viver bem” em latim.
Criticar e alertar a sociedade dita globalizada sobre seu estilo de vida. Eis o objetivo da arte exibida nas ilhas de Naoshima, Teshima e Inujima. Esculturas e instalações de japoneses e estrangeiros dividem o espaço com antigas casas de pescadores e construções históricas do período Edo (1603-1868, época em que o Japão conheceu uma paz duradoura e grande desenvolvimento). O processo idealizado por Soichiro Fukutake funcionou: manteve o ritmo normal da vida dos moradores, que se acostumaram aos visitantes contemplando obras no quintal de suas casas.
Alguns aproveitaram para ganhar algum dinheiro: abriram pequenos cafés ou casas de chá. A maioria é grata à arte que tomou o lugar das fábricas. Graças a ela, os moradores continuam com a pesca. Atividade que, aliás, depende do equilíbrio natural para existir.
De bike por Naoshima
A coleção de Naoshima ganha peças de tempos em tempos, graças às aguardadas mostras da Benesse. Em 1994, a inconfundível Pumpkin, a abóbora amarela com bolinhas pretas de Yayoi Kusama, foi a estrela da exposição Open Air ’94 Out of Bounds. A ideia era pensar sobre a coexistência entre natureza, arte e arquitetura – e também arrecadar fundos para a construção da ponte entre Naoshima e o mundo exterior. Assim, o píer onde a abóbora foi instalada se tornou um dos cartões-postais mais clicados do Japão.
Outra obra famosa, os letreiros em neon que formam 100 Live and Die, do americano Bruce Nauman, foi instalada no átrio do museu-hotel Benesse House. A cada seis minutos, as palavras“live/die” piscam simultaneamente. Que tal refletir com mais profundidade sobre a dicotomia viver-morrer? Inaugurada em 1992 com projeto do arquiteto Tadao Ando, a Benesse House ganhou na sequência o Benesse Park and Beach. Trata-se de uma extensão com vãos abertos até a praia, que abrigam quartos e um restaurante com vista para o mar. Obras como Coffin of Light e Conceptual Moss, de Hiroshi Sugimoto, decoram o foyer do Benesse Park – e só podem ser apreciadas por quem lá se hospeda.
Você pode andar por Naoshima de bike ou de micro-ônibus. Para ver de perto as instalações, caminhe. No verão, uma das mais concorridas é a Cultural Melting Bath: Project for Naoshima, do chinês Cai Guo-Qiang. A piscina instalada no sopé de uma colina, de acordo com os pontos chii, do feng shui, pode ser usada pelos visitantes. Uma curiosidade: a obra é parte de um projeto da Benesse, datado de 1995, para premiar talentos da Bienal de Veneza, na Itália. Já o onsen para banhos de águas termais batizado de Naoshima Bath, decorado com mosaicos, é criação dos moradores. Uma excelente maneira de rejuvenescer em meio à arte. Preste atenção na discreta indicação das peças que ornamentam as sete casas históricas restauradas pelos projetos Kadoya e Kinza e simbolizam a religiosidade e as crenças regionais.
O Chichu Art Museum (2004), imensa casa de concreto – o material predileto de Tadao Ando –, reúne em seu interior três nomes de peso. Claude Monet está ali com cinco telas da série Nenúfares, pintadas pelo impressionista em Giverny. O californiano Walter De Maria participa com Seen/Unseen/Unknown (2000) e Time/Timeless/No Time (2004), impressionante esfera de 2,2 metros de diâmetro, plantada no centro de uma escadaria e banhada por luz natural. Finalmente, seu conterrâneo James Turrell assina Afrum Pale Blue, Open Field e Open Sky. Dedique ao menos um dia inteiro para conhecer Chichu.
Inujima: sociedade reciclável
Recrutado pela Benesse para tornar a pequena Inujima uma seirensho (ilha-museu), o arquiteto Hiroshi Sambuichi moldou estruturas que complementam e preservam os vestígios de uma refinaria de cobre. O conceito? Usar o existente para revelar “o que está por vir”. A revitalização e a adaptação de Inujima terminou em 2010 para o festival de arte das ilhas Seto. Na maioria, os prédios guardam trabalhos de Yanagi Yukinori. A enorme instalação do artista, que estende seus tentáculos por todos os pontos intactos da antiga refinaria, é extraordinária.
Outras peças ocupam gazebos e armazéns. A instalação Illuminated Sun, neons com as cores e as formas da bandeira do Japão, em referência ao Deus-Sol, pode ser vista do pátio da casa onde está instalada. Dois enormes jardins de espelhos separam o visitante das luzes. No caminho, o reflexo do Sol real e das luzes se mescla à imagem do visitante. Em outra pequena casa, com um jardim bem-cuidado, janelas refletem a íris dos olhos, na instalação Eyeball Flower Garden. Do lado de fora, em meio às flores, você tem a impressão de ser observado através das janelas. Ao entrar na casa, os fantasmas do passado surgem: cenas de destruição ambiental propõem a transição passado-futuro, até o ponto em que virá a sociedade reciclável.
Os museus das três
ilhas foram
projetados por
arquitetos
importantes,
como o japonês
Tadao Ando
Dentre as obras feitas por artistas estrangeiros, que dividem as atenções com os trabalhos de Yanagi Yukinori em Inujima, está a incrível instalação Yellow Flower Dream, parte do projeto A-Art House, Okayama, da brasileira Beatriz Milhazes [leia a seguir entrevista exclusiva]. Distribuídos por várias galerias, os painéis coloridos de Milhazes se destacam como reflexos da vida cotidiana, da natureza e da geometria insulares.
Teshima: arte nos arrozais
Teshima, com seus enormes campos de arroz, imagem recorrente no imaginário coletivo sobre o país do Sol Nascente, é a mais recente adição ao projeto Benesse. Encarregado de levantar o Teshima Art Museum, o arquiteto Ryüe Nishizawa construiu prédios com formas orgânicas no alto de uma colina. Rei Nato, responsável pelas primeiras instalações, comprovou como a natureza cresce sem a interferência humana.
Até 2010 a ilha servia como depósito de lixo industrial das refinarias e fábricas ao largo da baía de Seto. O trabalho sensorial do artista deu a oportunidade de interação ambiental via elementos naturais. É o que acontece com a luz solar no célebre prédio oval plantado parcialmente sobre uma montanha.
Foi num santuário velho de séculos que se instalou a obra Les Archives du Coeur, do francês Christian Boltanski, especializado há 12 anos em registrar batimentos cardíacos em áudio. O visitante é convidado a ouvir o coração de um desconhecido enquanto aprecia a vista impactante do oceano.
Rumo à sala dos áudios, um corredor de luz única, revestido por espelhos, aumenta o ritmo do coração do próprio visitante. Nada melhor que viver em tempo real a arte que mudou para valer vidas humanas.
ENTREVISTA EXCLUSIVA
Um projeto mágico
Nesta entrevista, a artista brasileira Beatriz Milhazes fala da obra que realizou na ilha de Inujima
Por Waldick Jatobá
Yellow Flower Dream é o nome do trabalho que a artista plástica brasileira Beatriz Milhazes criou para o Art House Project – A-Art House* na ilha de Inujima, no Japão. A obra representa, por meio de cores repletas de energia, uma paisagem virtual que retrata a vitalidade da arquitetura e do cotidiano local, desdobrando-se na natureza de Inujima.
O Inujima Art House Project é uma parte das atividades relacionadas à arte, ligada ao Benesse Art Site Naoshima, conduzido pela Benesse Holdings, Inc. e pela fundação Fukutake nas ilhas de Naoshima, Teshima e Inujima. Seu objetivo é criar espaços significativos em ressonância com a natureza da região do mar de Seto. Numa de suas raríssimas entrevistas, Beatriz Milhazes falou sobre o assunto.
UNQUIET _ Como surgiram as ideias e o convite para esse projeto?
Beatriz Milhazes – São três ilhas que compõem o projeto de recuperação dessa área do mar de Seto – Naoshima, Teshima e Inujima –, realizado pela fundação Fukutake. A arte faz parte de um dos segmentos dessa revitalização das comunidades locais. O convite veio de Yuko Hasegawa, diretora artística das Inujima Art-Houses, desenvolvidas pela arquiteta Kazuyo Sejima, do grupo Sanna.
Você já conhecia o museu de Naoshima?
Fui conhecer Naoshima e o Benesse Museum depois de ter sido convidada para desenvolver um trabalho em Inujima. Para a minha criação era muito importante compreender todo o projeto da fundação na região. Arte, agricultura, biodiversidade e turismo são segmentos centrais que fizeram com que as ilhas deixassem o estado de isolamento em que se encontravam. É muito importante para a fundação incorporar as comunidades que ali vivem com esses projetos. A inclusão é fundamental para o sucesso da ação, que visa a melhoria social e econômica dos moradores locais.
Existe alguma relação entre o trabalho e a história da ilha? Inujima é a ilha que concentra a maior população idosa: você pensou em algo especifico com esse insight em mente?
A ilha de Inujima tem uma população inferior a 40 habitantes, com idade média de 80 anos. A maioria das casas que você vê ao chegar ao local estão vazias. O projeto das Art-Houses em Inujima foi desenvolvido pela arquiteta Kazuyo Sejima, que trabalhou em dois pontos principais: as casas que já haviam sido destruídas pelo tempo, deixando apenas os terrenos, e as casas que poderiam ser apropriadas para uma intervenção artística. A A-Art House (os projetos foram nomeados com letras) foi desenhada e construída num terreno onde existiu uma casa, cercada por outras residências, algumas habitadas. Ela tem forma de uma flor, uma margarida, e o “miolo” dessa flor é sem cobertura e tem um gramado que funciona como um pátio interno.
Quais os materiais utilizados?
Ela é toda de acrílico transparente, com teto e piso na área das pétalas. Existia uma obra já realizada pela arquiteta – e minha colaboração precisava respeitar algumas questões importantes para a Kazuyo: a transparência das paredes, para que de qualquer ângulo de visão, dentro ou fora da casa, se pudesse ver os vizinhos e jardins em torno; e era preciso usar como referência as hortas e jardins daquela parte da ilha. A região tem uma predominância de dias nublados, e nas minhas conversas com a comunidade local, me pediram muito para ter a luz do Sol e trazer mais cores para o local.
Como você atendeu esses dois pedidos?
Com a ideia do Sol em mente construí painéis de vidro nos quais desenhei “paisagens imaginárias” aplicadas com recortes de vinil adesivo transparente, colocados nos vértices das “pétalas da margarida”. Pintei o teto e o piso de amarelo, o que realmente trouxe luz. A A-Art House tem um jardim em torno que está sendo ativado para melhor integrar toda a vizinhança. Meu convite para a comunidade da ilha é que utilizem a casa para seus encontros e eventos sociais, que ela possa fazer parte da rotina de vida deles. Yellow Flower Dream é um grande passeio para uma experiência interativa, quase meditativa, pois integra o seu exterior ao interior de maneira natural, com beleza.
Você precisa modelar o trabalho durante o processo de criação?
Sim, normalmente trabalho com maquetes do espaço para sentir qual a melhor ideia. É fundamental que se visualize em 3-D a ideia que se tem desenhada. Não trabalho com o mundo digital, prefiro a experiência física, construída. Os desenhos para os painéis foram feitos na escala e depois selecionei as cores com base nos catálogos de vinis adesivos. São etapas que vão se construindo aos poucos e separadamente, até se transformarem no produto final.
Você acompanhou a montagem, a instalação da obra?
Acompanhei todo o processo de produção de longe. Eles enviaram fotos de cada etapa com muito cuidado e atenção. A empresa que desenvolveu e aplicou os recortes de vinil adesivo sobre os painéis de vidro já havia trabalhado em um outro projeto meu com o mesmo material para a fachada do MOT – Museu de Arte Contemporânea de Tóquio. Sempre gosto de trabalhar com equipes que já entendem o meu trabalho e sabem como executá-lo com precisão. Os técnicos que irão finalmente “traduzir” meus desenhos e projetos originais para a realidade são parte fundamental para que a obra seja bem-sucedida.
Nesse trabalho você exercita o tridimensional, diferentemente de suas pinturas, que são bidimensionais. Como foi essa experiência?
Nesse trabalho aconteceu algo único. Foi a construção de um espaço arquitetônico que pode ser habitado, utilizado para atividades diversas, ser uma “casa” de atividades imprevisíveis. Para mim, Yellow Flower Dream é um espaço mágico.
(*) Para mais detalhes visite o site benesse-artsite.jp
Erik Sadao