“É você que ama o passado e que não vê que o novo, o novo sempre vem.”
As palavras de Belchior, imortalizadas na voz de Elis Regina, ecoavam nos fones de ouvido enquanto eu cruzava o Jardin des Tuileries.
Ao contemplar a escultura “Le Réséda”, de Jean Dubuffet, percebi como artistas como ele só puderam existir graças aos eventos de 1874, tema da exposição que eu estava prestes a conferir.
Apertei o passo no Quai d’Orsay e deparei com uma multidão ainda maior que a habitual em frente ao museu. Era uma ocasião especial: a abertura da aguardada Paris 1874, Inventando o Impressionismo, que ficou em cartaz na capital francesa até julho de 2024 e será apresentada de 8 setembro deste ano a 20 de janeiro de 2025 na National Gallery of Art, em Washington.
A revolução de 1874 na arte
O ano de 1874 marcou para sempre a história da arte por dois eventos em Paris: o grande Salão de Arte, organizado por um júri acadêmico, e a primeira exposição independente dos novos Impressionistas — termo jocoso criado por Louis Leroy, crítico da época — organizada pelos artistas recusados no grande Salão. Ambos os eventos marcaram a ruptura com as convenções acadêmicas, abrindo espaço para o que conheceríamos mais tarde como arte moderna.
Assim como na música de Belchior, os Impressionistas desafiaram normas e rejeitaram o status quo, rompendo com as tradições estabelecidas e abraçando o novo, enfrentando críticas e resistência. Leroy, com seu termo pejorativo, não podia prever que esses artistas redefiniriam o que entendemos por arte. Suas pinceladas livres e o uso inovador da luz e da cor trouxeram uma nova perspectiva, transformando cenas cotidianas em obras-primas atemporais.
Os eventos de 1874
A exposição no d’Orsay recriou a experiência dos visitantes nos eventos históricos, com espaços que imitavam as cores das paredes dos prédios onde as obras foram exibidas originalmente. Uma única intervenção tecnológica transportava os visitantes ao Boulevard des Capucines, que delimita o 2º e o 9º arrondissements, onde ocorreu o primeiro salão dos excluídos, sem distrações desnecessárias.
“A Parisiense” (1874) e “A Bailarina” (1874), de Pierre-Auguste Renoir, davam as boas-vindas aos visitantes. A vista do Boulevard des Capucines, pintada por Monet, convidava à reflexão sobre como obras com pinceladas impressionistas já passavam pelo crivo do júri. A série “Classe de Dança”, de Edgar Degas, e “La Loge”, de Renoir, também eram destaques.
Para entender o impacto de 1874, a curadoria nos lembrava que as pinturas eram dispostas em ordem alfabética, não por gênero. “O Berço” (1872), de Berthe Morisot, foi exibida ao lado da sensual “Uma Olympia Moderna” (1874), de Paul Cézanne, causando verdadeira revolta do público. Louis Leroy, claro, criticou Cézanne, mas a obra, desta vez, era um dos destaques da exposição.
Influências da guerra e a reconstrução de Paris
A Guerra Franco-Prussiana (1870–71) e a Comuna de Paris (1871) influenciaram os artistas, que voltaram seu olhar para a reconstrução e os horrores dos conflitos. Obras de Édouard Detaille e Gustave Courbet, entre outras, refletem essas mudanças. Camille Pissarro e Monet, em “Pontoise” e “Argenteuil”, respectivamente, criaram paisagens que definiram o movimento Impressionista.
As paisagens de Charles-François Daubigny e Pissarro, o alvo preferido de Leroy, foram celebradas em duas grandes salas. Pissarro, mentor de Cézanne, também inspirou Vincent van Gogh. A exposição no Musée d’Orsay incluiu obras de artistas aceitos no grande Salão e nos eventos independentes, mostrando a evolução do estilo impressionista.
O Salão de 1874 e a modernidade na arte
“O Salão de 1874”, de Camille Cabaillot-Lassalle, exposto no ano seguinte, retrata a elite parisiense visitando o histórico Salão, com obras de vários artistas expostas como no evento original.
Manet, um dos pais do Impressionismo, optou por exibir a partir de 1875 somente no grande evento, causando uma ruptura com alguns de seus pares e até uma retaliação liderada por Degas.
A modernidade — cravada por Baudelaire em 1863 — foi tema recorrente em ambos os salões e contrastada com a revolução industrial, retratada em obras de Ernest Duez e Degas, mostrando o dia a dia de trabalhadores em minas e fábricas. Exposto no grande Salão, “O Pôr do Sol em Ivry” (1873), de Guillaumin, com a fumaça das chaminés incorporada à cena, mostra alterações na luz inconfundível dos Impressionistas.
A obra que deu nome ao Impressionismo
A obra “Impressão, Sol Nascente” (1872), de Monet, grande responsável pelo batismo do grupo, se destacou na exposição do d’Orsay, refletindo a luz característica dos impressionistas com uma iluminação especial. Redescoberta e celebrada desde o começo do século 20, a tela de Monet não foi uma das únicas quatro vendidas quando expostas no salão independente. A diferença de público entre os salões foi gigante.
Cerca de 300.000 pessoas passaram pelo Salão de 1874, ante 3.500 da exposição dos Impressionistas. Só o governo de Napoleão III adquiriu quase 170 obras do Salão principal. No ano seguinte, os quadros expostos na exposição independente não passavam de 250 francos. E dos artistas aceitos no grande Salão, apenas Pissarro, Morisot e Degas continuaram a expor nos dois eventos.
Escolhida como capa de um jornal criado para promover o movimento Impressionista, “La Balançoire” (1876), de Renoir, foi considerada a principal obra do grande Salão de 76. Não por acaso, encerra a mostra ao lado de “Dance at Le Moulin de la Galette” (1876), exercício similar da maestria do uso da luz para retratar uma cena cotidiana imortalizando a modernização da sociedade da época.
De volta ao Boulevard des Capucines
Não tive tempo nem de me sentar para digerir o que vi, pois o d’Orsay está fechando. Convenci um monitor a me deixar ver rapidamente a sala de Courbet, mas “L’Origine du Monde” estava no Centre Pompidou-Metz. Encarei uma garoa fina, refletindo sobre como os artistas desafiaram as convenções acadêmicas.
Andando sem rumo por Paris, cheguei ao Boulevard des Capucines, bem onde aconteceu o evento dos artistas excluídos que mudou a história, e encontrei um café. Sentei-me para refletir sobre as mudanças que eu próprio já testemunhei na arte e na cultura e em como, pouco mais de uma década após 1874, artistas como Gauguin, Seurat, Signac e outros já eram nomes disputados, quando o fone de ouvido voltou a tocar:
“…mas é você que ama o passado e que não vê. É você que ama o passado e não vê que o novo, o novo sempre vem”.
Paris 1874, The Impressionist Moment
The National Gallery of Art, Washington
De 8 setembro de 2024 a 20 de janeiro de 2025