Usina de Arte: iniciativa sustentável no sul de Pernambuco

Desde 2015, a antiga usina de açúcar Santa Terezinha abriu espaço para um parque artístico, botânico e educativo, que levou a uma nova forma de ocupação ambiental, econômica e cultural na Zona da Mata, em Pernambuco.

Município de Água Preta, Zona da Mata. A Usina de Arte, uma antiga usina de cana-de-açúcar em Pernambuco, é um projeto cultural de Bruna e Ricardo Pessôa de Queiroz, pensado para a comunidade de Santa Terezinha. O objetivo é integrar a memória do lugar e a história do Nordeste. Aqui pontes devem ser criadas entre os moradores da comunidade, os vizinhos da região, o público e o mundo das artes, pois a educação é parte fundamental do programa. Hoje com mais de 40 obras instaladas, os envolvidos têm a responsabilidade de fazer da Usina uma referência em arte no espaço público. A ideia de convidar artistas nacionais e estrangeiros tem como objetivo apresentar uma região apaixonante e inspiradora, a ser transposta em suas obras. A presidente da Usina de Arte, Bruna Pessôa de Queiroz, é uma personalidade jovem, mãe de três crianças, de 5 a 10 anos de idade, que adora receber os amantes da arte e todos os interessados em tudo o que diz respeito à cultura. Ela trabalha em parceria com o seu primo e marido, Ricardo (que nas horas vagas também é artista), cujos antepassados criaram a usina de cana-de-açúcar, que começou a operar em 1929. Para o casal, a arte e a cultura são como uma segunda pele, e ele, antes de mais nada, tem um senso de responsabilidade e cuidado com a comunidade, que ficou desprotegida após o fechamento da usina.

Usina de Arte, Pernambuco
Vista panorâmica do Jardim Botânico com a Usina ao fundo | Foto:

Novo Ciclo

O projeto Usina de Arte é um símbolo de renovação, um incrível ato de resistência à resignação do passado, que deu novas perspectivas a essa antiga usina, cujas atividades cessaram em 1998. Nos anos 1950, ela era a maior produtora de álcool e açúcar do país. Localizada no município de Água Preta, na Zona da Mata, Sul de Pernambuco, ela fica próxima da divisa com o estado de Alagoas. Ela possuía uma ferrovia própria, com cerca de 100 km de linha, 21 locomotivas (uma ainda exposta no parque) e mais de 100 vagões, utilizados para o transporte de cana-de-açúcar, açúcar e álcool. Atingida por uma grave crise, teve que fechar. Quase duas décadas depois, esse triste cenário de falência dá lugar a uma paisagem artística tão efervescente quanto emocionante. O lugar abriga hoje, além da coleção de obras de arte ao ar livre, um parque privilegiado em botânica.

Usina de Arte, Pernambuco
A instalação Cabanos em Mata de Água Preta, de Liliane Dardot

A Usina de arte é um símbolo de renovação, um ato de resistência
à resignação do passado

Foram também iniciados os trabalhos de reflorestamento e recuperação de habitats silvestres da região, com o objetivo de reverter o desgaste sofrido por décadas de uso do solo com a monocultura da cana-de-açúcar. O parque botânico, que possui cerca de 5 mil espécies distintas, está parcialmente no lugar da antiga pista de pouso da usina, e onde foram criados vários espelhos d’água para dialogar com a paisagem. Não é apenas um jardim de esculturas, mas um espaço de vivências e interações, que conta ainda com um festival anual de música, cinema, oficinas e um programa educacional para os alunos das escolas locais. 

Todos os artistas admiram o projeto, caso de Regina Silveira. “Tanto quanto aprecio a coleção e sua abrangência nacional e internacional, admiro o trabalho educativo de resgate da comunidade ao redor da velha usina: uma boa escola de música, uma oficina competente de fabricação digital, uma biblioteca ativa e muitos serviços, que agora dão nova vida à pequena cidade de Água Preta”, diz ela.

Usina de Arte, Pernambuco, Regina Silveira
A instalação Paisagem, de Regina Silveira, é um labirinto formado por 59 vidros marcados por tiros | Foto: Andréa Rego Barros

Liberdade criativa 

O projeto é fruto de uma paixão familiar, que fez Bruna e Ricardo mergulharem de novo na arte contemporânea. Ali nada foi definido com antecedência. Tudo continua em aberto e os (bons) encontros ditaram os primeiros passos do lugar, que em poucos anos conseguiu reunir cerca de 40 obras, a maioria delas produzida no local. Não existem preconceitos e, justamente por isso, a usina dá possibilidade a projetos inusitados. Na Usina de Arte, há espaço para a experimentação, e sem limite de tempo. Além disso, não há problema em não produzir uma proposta de imediato devido a quaisquer dificuldades ou se o resultado for uma obra efêmera, como uma performance. O que importa é o diálogo. Mesmo que os artistas convidados tenham total liberdade criativa, a cultura sucroalcooleira acaba por permear grande parte das reflexões e dos questionamentos oferecidos por seus trabalhos. Muitas obras remetem aos ciclos, métodos de trabalho, máquinas, vocabulário e arquitetura da indústria canavieira. Uma conversa visual ao ar livre.

Usina de Arte, Pernambuco
A obra Conversadeiras, da artista Cláudia Jaguaribe.

A artista Claudia Jaguaribe, cujas obras foram inauguradas recentemente, confidencia: “Criar um conjunto de obras para a Usina de Arte foi uma experiência única. Por ser um parque e um museu a céu aberto, fui levada para um novo desafio na minha produção. A dimensão do parque e o significado da reutilização da usina como área cultural criaram um novo polo, que reúne arte, educação e preservação do meio ambiente cultural para todo o Nordeste. Fazer parte dessa história e contribuir com quatro conjuntos de obras me possibilitou realizar as Conversadeiras”. 

Não há pavilhões, apenas obras que interagem com o meio ambiente e estão espalhadas pelos 40 hectares do local. Mesmo que haja pequenos carrinhos, puxados por uma moto de quatro rodas, para levar os visitantes pelo parque, é preferível, se possível, fazer a incursão em dois dias de passeios exploratórios. Bruna e Ricardo gostam da ideia de que as pessoas vivenciem pelo menos um pôr do sol por lá. Faz parte da experiência.

O Banco, de Hugo França | Foto: Andréa Rêgo Barros

O espírito do projeto, sempre flexível 

O programa de residências, criado em 2013, é muito aberto. Ele não tem regras definidas e os artistas podem ficar o tempo que quiserem: semanas, meses ou até um ano inteiro, como foi o caso de Juliana Notari. Esse programa foi o ponto de partida para a criação da Usina de Arte. As primeiras obras foram do designer Hugo França, com as suas esculturas-bancos, realizadas com troncos de árvores condenadas. O projeto foi formalmente estruturado em 2015, após Bruna e Ricardo conhecerem o artista plástico José Rufino, com quem compartilham uma paixão pelas plantas. Rufino foi, inclusive, diretor artístico do espaço até 2019. 

A obra Scopulus, de José Rufino | Foto: Divulgação

Um projeto sem timidez

Entre os destaques está a incrível audácia da chocante e avassaladora (no bom sentido das palavras) obra Diva, da artista Juliana Notari. Isso define o ritmo para um projeto dinâmico, ousado e generoso. Diva é uma escultura de concreto de 33 m de comprimento, 16 de largura e 6 de profundidade, pintada com uma resina vermelho-fogo, colocada na encosta de uma colina suave, que torna a obra visível a grande distância. Ela parece ser a vulva de uma mulher. A obra destaca questões relacionadas à poesia da artista, que desde 2003 tem se voltado para a anatomia feminina e busca suscitar debates em torno dos tabus sexuais impostos às mulheres. Mas as possibilidades de interpretação da obra também se abrem para outros campos, como a exploração da terra pelo capitalismo.

A obra Diva, de Juliana Notari, cuja representação é um “buraco- escultura” de 33 m de comprimento | Foto: Andréa Rêgo Barros

Nenhum trabalho é decorativo ou anedótico na coleção. Eles foram pensados ​​em larga escala, em sua maioria in loco, sem medo de abordar temas como as heranças africana e indígena e as questões relacionadas à escravidão e à pobreza, encontradas no Nordeste. As questões políticas estão muito presentes nessa coleção original. Regina Silveira, autora da obra Paisagem, que foi apresentada na última Bienal de São Paulo pouco antes de ser instalada na Usina, não hesita em falar sobre a violência que pode ser encontrada no Brasil. Bené Fonteles abordou a cultura africana trazida pelos trabalhadores forçados. Flavio Cerqueira nos dá a sua interpretação dos bandeirantes, e Paulo Bruscky, sua crítica às elites. Matheus Rocha Pitta, com seu “campo da fome”, fala sobre a história do Nordeste. Na Usina, tudo tem um sentido, que não deixa ninguém indiferente. 

A obra Brasil, de Paulo Bruscky | Foto: Andréa Rêgo Barros

Hora de futuras grandes mudanças 

A Usina está em processo de mudança. Assim, vislumbra-se a futura restauração de seus prédios. O grande arquiteto japonês Tsuyoshi Tane (em parceria com a Japan House de São Paulo) foi convidado a criar a “urbanização geral” do projeto. Por hora, a Usina é gratuita para todos, mas isso deve mudar em breve, com a cobrança de entrada para o público, salvo para a comunidade local, que permanecerá tendo acesso irrestrito. “É de nossa natureza pensar em formas de produzir arte pelos pilares da inclusão, participação e modificação da realidade social e econômica. Esperamos cada vez mais colher os frutos do que temos semeado ao longo dessa trajetória, que está sempre em atividade, avançando e reunindo condições para que cada um que mora no entorno da Usina de Arte possa sonhar mais alto, acreditar e realizar seus quereres”, diz Bruna. 

“A arte transforma” é o lema de Ricardo. “A Usina de Arte é uma possibilidade real de mudança de vida e cenários. Não somos só museu, mas uma instituição parceira da sociedade, que cria estruturas para a geração de renda e valor para mais de 6 mil pessoas. Ao iniciarmos a Usina de Arte, tínhamos em mente que era preciso sair de um modelo centralizador, no qual a Usina provia o sustento de todas as famílias, e partir para uma ideia em que cada um desenvolvesse a sua própria usina de acordo com as suas habilidades”, completa ele.

Clique aqui para ler a matéria na íntegra na edição 13 da Revista UNQUIET.

usinadearte.org

Ilustração: Antônio Tavares

Erik Sadao

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