Livrarias de Londres: uma Babel das letras

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Não por acaso, dois filmes românticos marcantes se passam numa livraria londrina: 84 Charing Cross Road/Nunca te vi, sempre te amei (1987) e Um lugar chamado Notting Hill (1999).

E mais: Londres atraiu e acolheu escritores de todos os cantos, que se tornaram patrimônio da língua inglesa: os irlandeses George Bernard Shaw e Oscar Wilde, o polonês Joseph Conrad, os americanos Henry James e T.S. Eliot, a neozelandesa Katherine Mansfield, o japonês Kazuo Ishiguro, o indiano Salman Rushdie, o paquistanês Tárik Ali. Sem esquecer Marx e Freud – que revolucionaram a sociedade com seus escritos e passaram seus últimos anos em Londres. (Friedrich Engels também viveu lá, de 1870 até a morte, em 1895.) Vale incluir o cineasta mais brilhante de sua geração, o americano Stanley Kubrick, que morou e trabalhou em Londres em seus últimos 38 anos. E um músico, Jimi Hendrix, que trocou a América por Londres para se tornar o roqueiro mais cultuado e bem pago do mundo.

Nos meus três anos em Londres (1962-65), eu me abastecia na então maior livraria do mundo (Recorde Guinness, com 48 km de estantes), a Foyles, encastelada desde 1929 em Charing Cross Road. Duas anedotas: ao saber que Hitler estava queimando livros, William Foyle telegrafou propondo comprá-los antes de irem para a fogueira. Durante os bombardeios da 2ª Guerra, sacos cheios de livros protegiam a cobertura do prédio, de preferência os encalhes do Mein Kampf do Führer.

livrarias de londres: Hatchards
Hatchards
livrarias de londres: Waterstones
Waterstones

A cena de livrarias de Londres nada sofreu com a expansão das vendas pela internet – um mero suporte, como era o correio. Ao contrário, diversificou seu atendimento presencial, fazendo das lojas polos de convivência, com clubes de leitura, debates, autógrafos e palestras de autores famosos, e saborosos cafés e restaurantes. Aqui um panorama seleto dos principais focos.

As gigantes • A mais antiga livraria do Reino Unido, fundada em 1797, a Hatchards de Piccadilly, mantém há 225 anos seu padrão de elegância e eficiência. Percorrer seus quatro andares com mais de cem mil volumes é uma experiência inesquecível. Na Noitada Anual do Cliente, no Natal, autores famosos se misturam com leitores num convívio enriquecedor. Também em Piccadilly, a Waterstones é o carro-chefe de uma megacadeia. A maior da Europa, é o lugar ideal para folhear todo tipo de obras ao abrigo do gélido inverno. A veterana Foyles segue firme com sete lojas na Inglaterra. A principal, em Charing Cross Road, moderna e arejada, ainda oferece quantidade (7 km de estantes) e qualidade (papelaria, revistas, CDs e DVDs), além de um auditório, uma galeria e um café sempre cheio. Para quem está atrás de um livro que não consegue achar, o local certo é a Hurlingham, em Fulham, com livros empilhados até sobre as cadeiras e mais de um milhão num depósito vizinho.

livrarias de londres Hurlingham
Hurlingham

A campeã de Chelsea • Numa ruela transversal da King’s Road, a principal via do bairro de maior poder aquisitivo, a John Sandoe Books – descrita invariavelmente como “uma livraria saída dos contos de Dickens” – ocupa três casas contíguas com jardineiras sempre floridas. Fundada há apenas 65 anos, reúne um acervo de 30 mil títulos sobre os mais diversos temas. O aconchego e a localização fazem dela uma das mais procuradas da cidade.

A volta ao mundo em Covent Garden • Especializada em livros de viagens, a Stanfords, fundada há 170 anos, faz jus a sua fama de maior do mundo na categoria. É até citada no romance de Sherlock Holmes “O cão dos Baskervilles”. Fornecedora oficial do exército britânico, teve clientes famosos como o desbravador da Antártida, Robert Scott, e a pioneira da enfermagem moderna, Florence Nightingale. Bússolas, sextantes, globos terrestres, mapas e guias de viagem dão uma atmosfera aventureira à loja, onde fascinantes relatos podem ser folheados num café à moda antiga, com grãos torrados das mais variadas procedências e deliciosos sanduiches e bolos.

A mais bonita • Embora pertença a uma cadeia recente, de 1990, a Daunt Books de Marylebone High Street ocupa uma loja eduardiana de 1912, a Francis Edwards, considerada a primeira livraria do mundo construída expressamente com esse propósito.  Além de longas galerias de carvalho, janelas com vitrais coloridos e graciosas claraboias, ostenta um grande cofre que guardava suas preciosidades. Seus livros são catalogados por país, um modo original – e por que não “excêntrico”? – de estimular a leitura.

John Sandoe Books
Word on the Water

A mais intelectual • A Libreria, em Spiltalfields, inspirou-se no conto de Jorge Luís Borges “A biblioteca de Babel”, que continha todos os livros do mundo. Com tetos e paredes espelhados, a loja parece imensa e cataloga os livros de um modo idiossincrático, com seções como MÃES, MADONAS E MERETRIZES. Mas o leitor só será admitido neste espaço tech-free se deixar o cavalinho (o celular) na chuva…

A mais chique • Discreta e sofisticada, ocupando uma residência georgiana na aristocrática Mayfair, a Heywood Hill é famosa por seus livros antigos, mas também muito procurada por sua rica coleção de literatura infantil. Um detalhe caro aos bibliófilos: durante a 2ª Guerra, trabalhou na loja a romancista Nancy Mitford – a mais esperta das lendárias Seis Irmãs. Em 2011, a Heywood Hill foi agraciada com o título de fornecedora oficial da Família Real.

A mais original • Livros e água geralmente não se dão bem, mas Word on the Water – uma livraria flutuante em King’s Cross – virou um sucesso desde o dia em que abriu. Instalada numa centenária barcaça holandesa, está cheia até o porão de livros interessantes, além de um acolhedor fogareiro antigo e de um desbocado papagaio africano. A livraria literalmente faz ondas em suas noitadas de poesia e música pop.

Gosh
Books for Cooks

A mais apetitosa • Milhares de títulos de culinária e gastronomia são vendidos na Books for Cooks em Notting Hill. Na sua cozinha experimental o chef coproprietário Eric Treuillé testa as receitas dos livros e promove um dos mais concorridos almoços do bairro, com longas filas nas portas do pequeno café já a partir das onze da manhã.

O QG das HQs • Super-heróis e heroínas, duplas dinâmicas como Batman e Robin ou no formato patrão-criado de Mandrake e Lothar, criaturas anfíbias como o Príncipe Submarino – o fã de histórias em quadrinhos tem o mundo a seus pés na Gosh!, em Soho. E também acesso a mangás, graphic novels, estórias cômicas, biografias e livros de arte. O porão abriga verdadeiras joias: pôsteres vintage e, para os colecionadores, números raros de gibis antigos.

O pulo do gato • A bem sucedida loja de livros usados Bookmongers, em Brixton, foi fundada há 30 anos pelo americano Patrick Kelly, mas quem manda na casa hoje é o gato vira-lata Popeye. Dizem até que o felino costuma dar dicas de leitura para os clientes que o cativarem.

livrarias de londres: New Beacon Books
New Beacon Books

As literárias • Fundada em 1929, a Faber&Faber teve como seu editor de poesia T.S. Eliot, autor do “poema do século”, The Waste Land/A Terra devastada. Entre seus autores conta treze laureados do Nobel e seis do Booker Prize. Sua livraria fica em Bloosmsbury, o bairro que abrigou o círculo de Virginia Woolf. Acompanhando o sopro do vento, a Faber contratou como editor em 1987 o roqueiro do The Who Pete Townshend, que lá publicou o livro de contos Horse’s Neck. Também em Bloomsbury fica a livraria do jornal literário The London Review of Books, famosa por seus títulos de ficção clássica e pelos deliciosos bolos do seu café.

No País das Maravilhas • A heroína de Lewis Carroll impera no Alice Through The Looking Glass, em Cecil Court, com edições raras, roupas e suvenires. Tem até um coelho branco chamado Harley – só não dê uma de Alice e caia no buraco atrás dele…

Horse’s Neck, Pete Townshend, Faber&Faber
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Gay’s the Word

Black is beautiful • Fundada em 1966, a New Beacon Books, primeira livraria negra de Londres, ergueu em Finsbury Park um bastião da cultura afrodescendente, vendendo e editando livros de autores negros britânicos, caribenhos, africanos e afroamericanos. Em janeiro de 2022, a direção da livraria-editora anunciou que, graças a uma campanha notável de crowdfunding, levantou mais de 80 mil libras e assim continuará um farol a iluminar as letras e a cultura negra.

Aqui tem LGBTQ+ • Quando a Gay’s the Word abriu em 1979, literatura gay era escassa em Londres. Afinal, até 1967 o homossexualismo ainda era crime no Reino Unido. O mercado cresceu, mas a loja de St. Pancras ainda guarda a hegemonia, com ficção, poesia, graphic novels, literatura infantil e relações familiares. Centro de reflexão sobre a cultura gay, a livraria promove eventos literários e grupos de debates, um dos quais já completou 40 anos de atividades.

Encerro com uma notícia boa e outra ruim. A livraria que inspirou o filme Nunca te vi, sempre te amei fechou em 1969, com a morte do dono. Quando a autora Helen Hanff, após 20 anos de correspondência, finalmente cruzou o Atlântico para visita-la, achou-a em desocupação (o local hoje abriga uma franquia da McDonalds.)

Já a livraria de Um lugar chamado Notting Hill continua aberta, na região do mercado de antiguidades de Portobello Road, com sua fachada azul e o letreiro The Notting Hill Bookshop.  Os eflúvios românticos de Julia Roberts e Hugh Grant continuam vivos 23 anos depois. A estátua de Eros domina o centro geográfico da cidade, em Piccadilly Circus, mas é entre as estantes da Notting Hill que Cupido tem flechado corações do mundo inteiro. Homens e mulheres dos mais variados cantos acorrem à pequena livraria para namorar e propor casamento. Um alemão surpreendeu a noiva ocultando uma aliança entre as páginas de um livro de Harry Potter. Um chinês foi mais longe: alugou o espaço para uma sessão de fotos, ele de fraque e a mulher vestida de noiva. Em nenhuma outra cidade os livros são capazes de mexer com os corações e mentes das pessoas – e até mudar radicalmente suas vidas – do que em Londres.

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Heywood Hill
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Foyles

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