A história da hoteleira e ativista social Petit Miribel se confunde com a da fundação Sol Y Luna, no Vale Sagrado, no caminho para Cusco e Machu Picchu, no Peru. A francesa de 53 anos, nascida na região alpina de Bourg-en-Bresse, largou a segurança de uma vida europeia confortável para seguir um chamado que a traria à América do Sul, onde fincou raízes na Cordilheira dos Andes. Ao lado do marido Franz, ela criou a fundação para melhorar a educação e fortalecer a cultura das crianças da etnia quéchua em uma região que servia somente de acesso para Machu Picchu, estrela do turismo no país. Para manter e melhorar a estrutura da fundação, construiu o Sol Y Luna, hotel completamente sustentável, com identidade tão marcante que hoje, assim como Petit, se tornou um símbolo do Vale Sagrado.
Como uma francesa foi parar no Peru?
Acredito que um chamado me trouxe ao Peru. Acredito que há diferentes estágios de vida. Tenho memórias vivas dos meus 12 ou 13 anos já com a necessidade de ser útil aos outros. Sempre me achei uma privilegiada por ter nascido em uma família que me deu acesso a educação, a comida, a férias, a roupas… Ou seja, a tudo o que precisamos para viver. Não me lembro ao certo de quando me dei conta de que a maior parte do mundo não tem acesso a essas coisas. Essa percepção fez com que me perguntasse: por que eu? Há um limite muito claro do que preciso materialmente como pessoa. Se eu posso caminhar, quero caminhar pelas pessoas que não podem. Somos parte da humanidade, somos todos humanos.
Quando você foi para o Peru?
Vim ao Peru há 30 anos, eu tinha 23. Morava em Londres e trabalhava para uma empresa de mineração. Tinha uma vida ótima na cidade. Ganhava bem para uma pessoa da minha idade na época. Um dia me dei conta de que aquela vida não era para mim. Era como se enxergasse meu futuro: casar, viver uma vida típica londrina, com uma bela casa de campo para os fins de semana. Nada errado com isso, mas sentia que não estava realmente vivendo. Nós todos temos vidas diferentes, temos o direito à escolha. Para mim, a escolha era sair daquele círculo que conhecia tão bem. Até hoje não sou realmente casada. De vez em quando converso com meu marido sobre o assunto. Nós nunca nos casamos porque nenhum de nós precisa de um papel para oficializar algo que já sabemos ou da aprovação de um juiz ou de um líder religioso. Nunca sonhei em me casar. Isso nunca foi importante para mim.
E como era a vida em Lima?
Trabalhava muito, ganhava bem. Comecei a me perguntar o sentido daquilo, ainda mais morando em um país tão desigual. Um dia disse ao meu marido: “Vou embora daqui, quero morar nas montanhas”. Ele não acreditou. É preciso pensar que, àquela altura, o país não é o que é hoje. Eu queria estar com as pessoas locais. Franz decidiu vir comigo. Fui muito sortuda. Ele era um trabalhador independente e estava em Lima antes de mim. Tinha uma empresa de paragliding. Gente de toda a Europa vinha voar pelo Peru com ele. Ele manteve o negócio, trabalhando a partir do Vale Sagrado.
Como era o Vale Sagrado quando vocês se mudaram?
Não havia turismo. Era literalmente o meio do nada, um lugar que se cruzava para chegar a Machu Picchu. Nós éramos jovens, não tínhamos uma grande poupança. Saíamos todos os dias para visitar comunidades locais e ver de perto seus desafios.
E como surgiu a Associação Sol Y Luna?
A associação foi aberta antes do hotel de uma maneira muito simples. Éramos somente Franz e eu, visitando comunidades e tentando ajudar como podíamos. Nos demos conta de que havia muito a ser feito e que nós podíamos fazer muito pouco. Isso nos levou à conclusão de que precisávamos fazer melhor para poder ajudar mais gente.
E assim nasceu o hotel?
Sim. Precisávamos de dinheiro para manter a associação. Franz é antes de tudo um arquiteto. Não sabíamos nada sobre hotelaria. Eu disse a ele: “Não sei nada sobre turismo, mas um dia as pessoas virão para cá. Por que não construímos um hotel?”. Ficou claro que para manter o trabalho com as comunidades, precisávamos ganhar dinheiro. Não imaginava o que viria com o hotel.
“Investimos para ganhar
o suficiente para manter a fundação. Esse é o propósito do Sol y Luna”
O Sol Y Luna acabou se tornando a tradução mais autêntica do destino…
Acredito que o motivo tenha sido nossa necessidade de criá-lo aos poucos. Quando o negócio é seu, você sabe exatamente o que quer colocar em cada cantinho. Você sabe como quer que seja a comida, as atividades. Recentemente, recebemos propostas de arquitetos se oferecendo para decorar nossos novos quartos. Como já somos um hotel estabelecido, nos perguntamos: “Por que alguém de fora precisa decorar nossos quartos?”. É o nosso hotel. É o nosso lar. Nós vamos continuar a decorar e a cuidar de todos os detalhes. Nós adoramos estar envolvidos em relação a tudo no Sol Y Luna.
O Vale Sagrado é por vocação um destino para desconectar?
Sim. Mas ainda assim precisamos garantir que haja boa internet porque isso se tornou tão importante quanto a água. Não temos TV. Temos jardim, temos salão de jogos, temos atividades e tudo o que propomos é focado na conexão. As pessoas estão viciadas. Mesmo ao percorrer as trilhas incas, um lugar que obriga você a literalmente se conectar à própria respiração, ficam ansiosas nos pontos sem conexão. Imagine nossos hóspedes, que vêm de outros continentes para este lugar remoto que construímos no interior do Peru e, mesmo assim, não conseguem se desconectar de imediato.
Como você enxerga o Vale Sagrado no futuro?
Eu só espero que haja um Vale Sagrado. Nós precisamos que o turismo retorne. Mas precisamos nos manter autênticos com o que somos, com nosso povo. O turismo é a única indústria do Vale Sagrado. Nossa região se tornou um lugar da moda para o peruano de Lima. Muitos compram casas de verão aqui. A invasão ajuda no desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, afasta as pessoas locais dos vilarejos por causa da supervalorização dos imóveis. Durante a pandemia, mantivemos o hotel com 2% da ocupação. Sabemos por quanto tempo conseguimos manter a estrutura. É triste ver o quanto alguns negócios da região foram atingidos.
E o futuro da Associação Sol Y Luna?
Queremos as crianças da associação cada vez mais em contato com nossos hóspedes. As apresentações de dança e música já fazem parte da nossa programação. Elas mostram o resultado do trabalho com educação e senso de pertencimento da própria cultura que realizamos.
O contato com a comunidade local é o grande diferencial do Sol Y Luna?
Sim. Vivemos em um mundo que nos convence a comprar algo que supostamente nos fará mais felizes. Pode ser uma casa, um carro ou um tênis novo… Não importa, a satisfação dura somente um minuto. Ou nem isso. Quando visitamos a associação, entramos em contato com uma cultura diferente da nossa e isso gera uma alegria que dura muito mais. Todos que chegam ao Peru sabem o que vão encontrar em Machu Picchu. Sabem algo sobre os museus e lugares que vão visitar. Sabem até mesmo o que esperar do Sol Y Luna. Recentemente, uma família americana, depois de visitar todo o país, chegou ao nosso hotel e foi conhecer a associação, algo que não estava no roteiro. Na partida, me disseram que era a melhor memória que levariam do Peru e que a melhor recordação da viagem foi o contato com as crianças. Para mim, isso é a essência do que fazemos.
Sol Y Luna
Vale Sagrado
- Eliminação do plástico de uso único
- Utilização dos ingredientes produzidos na horta local
- Painéis de energia solar para minimizar o uso da energia convencional
- Todas as reservas contribuem para Associação Sol Y Luna, referência internacional na educação das crianças das tribos Quéchua do Vale Sagrado.asociacionsolyluna.com
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