Fado consumado

Viver em Lisboa é como rebobinar a fita de uma história. História que eu nem sequer estava aqui para contar

Viver em Lisboa é como rebobinar a fita de uma história. História que eu nem sequer estava aqui para contar

Ando a passos curtos pelas ruas da Mouraria. Daqui do alto, da porta do café para fora, o mundo corre apressado em direção ao futuro que não ameaça baixar ali. Entro em novo ritmo e busco um exato compasso que me tire da frequência histérica do tempo dos outros d’além-mar. Me rendo à rotina de Lisboa, anacrônica e melancólica, dos anos de sua juventude real. E sigo com ela na velocidade do sol morno de inverno. Sol que esfria lentamente quando a noite tarda a escurecer para, então, tudo se recolher e tudo renascer outra vez, no mesmo vagar de ontem. Ainda hoje me senti devagar como antigamente: nostalgia cronológica de uma época que não vivi.

À sombra das velhas vielas do bairro, relógio e coração badalam em sintonia fina de modo que eu possa não apenas ver, mas sentir o tempo passar em ritmo que já não se entende mais. De alguma esquina, talvez da janela de casa de mulher, vem o perfume de uma saudade apertada – rosa-mosqueta e alecrim, ou qualquer coisa de jardim que fugiu da memória olfativa em sua certeza quase ocular. Lisboa se movimenta contra o vento, de frente para o Tejo e de costas para uma Europa já cansada, incapaz de acompanhar a sarabanda do novo mundo. Na Ribeira das Naus, de onde um dia zarparam heróis ao encontro do imenso improvável, hoje voam apenas gaivotas igualmente apaixonadas pelo prazer da descoberta. Em terra firme, há obras inacabadas, canteiros onde crescem daninhas as ervas, e pedaços de um passado à espera de ser passado a limpo.

Viver em Lisboa é como rebobinar (só sabe o que significa a palavra quem limpou muito cabeçote na vida) a fita de uma história. História que eu nem sequer estava aqui para contar. Sempre tive nostalgia de um tempo que não vivi, e a cidade me convida timidamente a voltar no tempo em sua leveza anacrônica: as praças, os jardins, as lojas, as roupas e os penteados das senhorinhas, o vagar das manhãs, o sol preguiçoso das tardes chuvosas, o cheiro das padarias e cafeterias me transportam para o Rio de Janeiro descomprimido, à Copacabana da minha avó, com as vitrines suadas de risoles e empadas da confeitaria Colombo da Barão de Ipanema, dos doces do Cirandinha, das atendentes da Max Factor na Sears da praia de Botafogo e na Mesbla do Passeio. Lisboa nos permite o saudosismo e a nostalgia sem a pressão de viver o presente como se não houvesse amanhã. E aos que chegam querendo atropelar o andar da carruagem, um aviso: pode ser que não se perca o bonde, mas certamente vai pegar o errado.

Há uma crise no ar, mais existencial que financeira, que freia toda gente e os impede de seguir adiante – de certa forma, gosto de pensar, deram a eles licença quase poética para continuar assim, alheios à modernidade, livres para tocar sua marcha lenta no limite do ponto morto. Ora, pois sim, foi-se o tempo deles. Daqueles bravos navegantes que inventaram a globalização e trouxeram o outro lado da Terra para o Velho Mundo, os cheiros do Oriente e os sabores do Ocidente selvagem para os salões das grandes metrópoles. Fizeram muito, trabalharam pesado (assim como as pessoas, países também têm o direito de se aposentar). Estacionaram em algum momento entre o grande terremoto de 1755, a grande fuga de 1808 ou, talvez, em 1974, na aurora de uma revolução que tirou o último fôlego de um povo que, adoram dizer, parece ter ficado para trás. Deixe-os em paz!

Correu tudo tão depressa, cruel e implacável, na velocidade dos que dão a engrenagem do novo milênio, que já não há como trazê-los para um presente frenético latente. Não foi o tempo deles que estancou. Talvez tenha apenas fugido de seu controle. Talvez tenha disparado rumo a um futuro do qual eles não querem muito saber. Não estão na contramão, apenas de volta ao seu timing depois de rápida passagem, traumática, pelos tempos modernos. Agora tudo passa a ser (quase) como antes. Sem pressa, com hora de sobra para que todos nós, patrícios e forasteiros, aventureiros de sempre, possamos pensar, olhar para fora e quem sabe para dentro. A vida agora segue maior que o entendimento. 

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