Sabores que desvendam mundos

A leitura sobre a gastronomia pode transformar a sua experiência de viagem

Como pode um simples croissant estar relacionado ao triunfo francês sobre os otomanos na Batalha de Viena, em 1683? E o kimchi, um prato essencial na cultura coreana, simbolizar a resistência durante a ocupação japonesa, entre 1910 e 1945? A história da gastronomia raramente é linear — e é justamente nessas camadas de significado que reside a sua riqueza.

Muito antes de ser crítica de restaurantes, eu já acreditava que a verdadeira essência de um lugar se descobre pelo estômago. Isso me faz mergulhar em livros sobre o tema antes de cada viagem, buscando conhecimento para aproveitar ao máximo cada experiência.

Mais que os guias de viagem tradicionais, os livros de gastronomia desvendam histórias, conectam culturas e apontam novos caminhos.

E hoje, graças à tecnologia, temos a facilidade de levar muitos deles a bordo, armazenados em
tablets. Se você busca experiências gastronômicas além dos roteiros óbvios, aqui estão algumas sugestões de leitura para inspirar e até mesmo roteirizar a sua viagem!

O Homem que Comeu de Tudo
Jeffrey Steingarten, Companhia das Letras

Imagine só, um advogado formado em Harvard abandonar a carreira para se tornar crítico gastronômico na Vogue. Há algumas décadas, Jeffrey Steingarten fez essa proeza, e o resultado pode ser conferido nesta coletânea de crônicas, nas quais ele investiga, com humor ácido e precisão quase científica, verdades e mitos culinários mundo afora. Na Itália, lança-se na busca pelo pão perfeito, entre aldeias e padarias artesanais, inclusive entrevistando padeiros. Essa fixação se volta a outro pão, o naan, na Índia, onde o autor mergulha nas diferenças entre os fornos tandoor e os métodos caseiros de preparo — isso sem deixar de decifrar a alquimia das especiarias locais. Já nos mercados da Coreia do Sul, ele desvenda os segredos do típico e onipresente kimchi, para depois replicá-lo em casa. Cheio de referências, o livro traz pistas valiosas sobre o que buscar em diferentes destinos e dicas certeiras sobre como reconhecer e apreciar verdadeiros achados. Um clássico da escrita culinária, para ler com gosto e acender seu lado aventureiro e gourmet.

A Deliciosa História da França
Stéphane Hénaut e Jeni Mitchell, Seoman

Um livro de história que se revela ser um guia inesperado. Suas páginas desvendam pratos emblemáticos e nos presenteiam com pérolas, como um molho encorpado e delicioso derramado com gosto em uma viagem pela França. Em Castelnaudary, por exemplo, é servido o melhor cassoulet do país – o prato foi criado nessa região do sul, durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), para alimentar os soldados famintos (e provavelmente irritados), o que seguramente traz um significado diferente à expressão “comida de guerra”, como a conhecemos. As páginas também mergulham na história do pão francês e nos lembram como a sua escassez foi um dos estopins da Revolução Francesa (1789-1799). Se isso não for suficiente para fazer você olhar para as boulangeries com um misto de respeito e devoção patriótica, talvez as leis da baguete, de 1933, consigam. No fim da leitura, fica claro que visitar o país de Victor Hugo sem conhecer a história de sua comida é como pedir um croissant em Paris sem uma boa manteiga – por que se privar de algo que pode ser ainda mais saboroso?

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Ceviche: Peruvian Kitchen 
Martin Morales, Ten Speed Press

Não se deixe enganar pelo título. Quando o chef Martin Morales – que apresentou a culinária peruana à Grã-Bretanha – escreveu Ceviche, não estava brincando de lançar um livro de receitas. Sim, elas são o ponto focal da obra e transcendem o prato que dá nome ao livro, abordando comida de rua, carnes, grãos, saladas, sobremesas e drinques. Mas é nas entrelinhas que seu conteúdo brilha, quando Morales contextualiza a gastronomia peruana como uma herança cultural viva, rica e multifacetada. Ele não só nos ensina a cozinhar: nos faz sentir sentados à sua mesa, ouvindo histórias e rindo, enquanto o peixe descansa no limão. Para isso, narra a própria infância com a família, em Lima, e espalha notas entre as receitas, páginas e fotos com histórias sobre bairros limenhos, influências indígenas, espanholas e asiáticas, curiosidades sobre ingredientes e outras peculiaridades. Acredite: ao ler Ceviche, você não só vai mudar de planos para o jantar, mas também para a próxima viagem, munido de um conhecimento considerável para explorar a gastronomia peruana no próprio país.

Gastro Obscura: A Food Adventurer’s Guide 
Workman Publishing Company

Dedicado a viajantes intrépidos, Atlas Obscura é um guia de viagem online que parece ter sido escrito por Indiana Jones. E o que dizer da vertente culinária dessa abordagem? Gastro Obscura: A Food Adventurer’s Guide convida a uma jornada gastronômica pelo extraordinário. Mas calma. Não se trata apenas de bizarrices alimentícias — cada prato vem temperado com histórias saborosas, que fazem você se perguntar: “Até onde eu iria por uma verdadeira aventura gastronômica?” A resposta pode estar em Cingapura, para o ritual da salada yusheng, uma mistura festiva de Ano-Novo que promete a prosperidade. Ou talvez no Chile, a fim de descobrir que gosto tem uma cerveja artesanal feita de… névoa. Se seu plano são os sabores da Itália, saiba que na Sardenha é produzida, por uma única família, a massa mais rara do mundo, a su filindeu, que está em risco de extinção, pois nem mesmo os chefs mais experientes conseguiram reproduzi-la. É uma leitura quase provocadora para quem vê no prato muito mais do que só comida. Também é uma chance de se conectar com culturas diversas e descobertas intrigantes durante as viagens.

A Comida Baiana de Jorge Amado, ou O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor 
Paloma Jorge Amado, Panelinha

A comida está profundamente entrelaçada com a obra de Jorge Amado, seja como elemento de ambientação, seja como símbolo de identidade cultural, desejo e celebração da vida baiana. Ela é sensual em Gabriela Cravo e Canela (1958), acolhedora em Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966) e cotidiana nos becos e mercados de Salvador em Os Pastores da Noite (1964). Para o viajante, este livro não só aponta ícones culinários do estado e suas receitas, como também os carrega de significado. Organizado pela filha do escritor, a obra é como um bom acarajé: cheia de camadas, com referências e inspiração para um roteiro de sabores na Bahia.
Do sarapatel de Dona Flor (que, aliás, é professora de culinária) às fatias de parida (rabanadas) de Tereza Batista Cansada de Guerra (1972), cada prato é acompanhado por trechos dos livros, conectando sabores a personagens emblemáticos e trazendo à mente paisagens de cidades como Salvador, Ilhéus e até mesmo a fictícia Santana do Agreste. Um guia afetivo e cultural que vai além das páginas e belas fotos e evoca mercados, tabuleiros de acarajé e cozinhas de terreiros, em uma incrível viagem sensorial. É uma leitura intensa e cheia de vida, como se Tieta sussurrasse em nosso ouvido: “Um pouco mais de pimenta, querido,
que a vida também arde”.

Matéria publicada na edição 18 da revista UNQUIET

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