Há dez anos, quando estive em Berlim para a comemoração dos 25 anos da Queda do Muro, como de costume dei uma passada no bar do Regent para botar o papo em dia com uma amiga que dirige o hotel. Enquanto saboreava um drinque à base do Alder Gin, produzido ali, no Mitte, me dei conta que bem ao meu lado um pacato casal oriental degustava um uísque e conversava baixinho. Em euforia discreta, saquei da mochila um exemplar da primeira tiragem de O Incolor Tsukuru Tazaki e Seus Anos de Peregrinação, companheiro de viagem daquela jornada, lançado mundialmente semanas antes. “Carmen, por acaso esse senhor ao nosso lado é o escritor Haruki Murakami?” Fiz a pergunta e coloquei o livro em cima da mesa sem fazer muito alarde, já emendando algumas frases sobre como sou completamente obcecado por sua literatura. Como toda boa profissional da hospitalidade, minha amiga discretamente só assentiu com a cabeça antes de me dar a notícia, num tom de voz quase inaudível, de que o hotel tinha ordens de não importuná-lo. Confesso: prefiro não conhecer pessoalmente meus ídolos. O receio de me decepcionar é imenso. Mas ali, naquele momento, como numa das coincidências que embaralham a vida dos personagens nos romances do japonês, me vi a menos de 2 m do homem responsável pelas tramas que têm feito minha cabeça nas duas últimas décadas. Seus livros foram companheiros de mais jornadas do que me recordo e, inevitavelmente, me levaram às lágrimas nos últimos capítulos. Cruzei o olhar com ele mais de uma vez e acenei com a cabeça, inclinando com respeito numa saudação beirando a oriental. Carmen, sem jeito, mudou de assunto e pediu para ver as fotos do black tie que ia usar na solenidade do dia seguinte.
The Okura Tokyo
Beneficios: Welcome Amenity Especial de Boas Vindas e acesso ao Executive Lounge exclusivo, com drinks, cafés e high tea diários.
- Use o código: UNQUIET
- Validade: Março de 2025
Quando fui à chapelaria, nossos caminhos se cruzaram e, novamente com uma saudação oriental, arrisquei um “iroiro arigatô gozaimashita” (“muito obrigado por tudo), em um japonês rudimentar, e ele acenou de volta com a cabeça. Para evitar colocar minha amiga em uma situação embaraçosa, não puxei conversa e nem pedi autógrafo. Ele deve ter notado o livro que eu carregava, e nunca saberei se ficou surpreso com a minha disciplina. Guardei sua expressão cordial e por dias vivi como um de seus personagens, com as válvulas de escape das emoções meio bloqueadas, melancólico, remoendo aquele momento com a hipótese de quem poderia mudar o rumo da história num impulso. E, como o sintoma dessa angústia, ganhei a recordação mais condizente com a obra de Murakami.
Em um mundo cada vez mais individualista, a busca por relacionamentos profundos e de entendimento mútuo dos mistérios ao nosso redor, narrados a partir de personagens ora heroicos, ora medíocres, torna os livros de Murakami os melhores companheiros para jornadas solitárias. Lembro com carinho do prazer de me sentar em cafés, envolvido em seu universo, imaginando as emoções reais de desconhecidos que cruzam nosso caminho quando botamos o pé na estrada, e das possíveis histórias fantásticas ou absurdamente comuns que cada um de nós carrega e que dão sentido à vida e, claro, às viagens.
Sete livros para embarcar no universo Murakami…
Após o Anoitecer
Entre o anoitecer e os primeiros raios da manhã, a trama narra uma série de encontros vividos por Mari Asai, uma garota retraída que abandona a casa dos pais para seguir sem rumo pelas ruas de Tóquio. Sua irmã, Eri, uma modelo de sucesso, se deitou para dormir e nunca mais acordou. Suas histórias se entrelaçam, seguindo os ponteiros em tempo real madrugada adentro, em meio ao encontro com alguns dos personagens mais cativantes criados pelo japonês: Takahashi, um músico melancólico, que busca algum sentido para a vida; Shirakawa, um workaholic de tecnologia com uma sinistra identidade secreta; e Kaoro, gerente de um motel que se envolveu com a máfia chinesa ao ajudar uma prostituta violentada. As complexas relações do amor entre as irmãs, novos amigos e a paixão por desconhecidos se desenrolam em meio ao jazz e a uma trilha pop, onipresentes no universo Murakami.
Minha querida Sputnik
Uma história de amor não correspondido flerta com o realismo fantástico e tem como plano de fundo a vida da jovem Sumire. Aos 23 anos de idade, ela nunca se apaixonou. Tudo muda quando conhece Miu, uma empresária de sucesso 20 anos mais velha. Em uma viagem à Grécia, E. K., o narrador, completamente apaixonado por Sumire, tenta encontrá-la após a notícia de seu misterioso desaparecimento. A linha tênue entre a fantasia e a realidade na vida dos três personagens é desenvolvida em uma prosa repleta de pensamentos profundos sobre o sentido da vida, o papel do destino, as delícias e as dores do amor romântico e, principalmente, a solidão – o fio condutor e um espelho de nós mesmos, responsável pela verossimilhança dos personagens. O romance nos força a um mergulho nas agruras que tornam nossa espécie mais humana.
Kafka à beira-mar
Meu Murakami preferido transita entre o universo pop do Japão e a tragédia grega. Kafka Tamura é um jovem de 15 anos que foge da casa do pai para escapar de uma terrível profecia. Em busca da mãe e da irmã, desaparecidas desde sua infância, Kafka segue sem rumo e cruza em seu caminho com Satoru Nakata, um homem idoso que desenvolveu poderes sobrenaturais. É considerado pelos fãs do escritor seu romance mais ambicioso, uma das obras mais surpreendentes da literatura contemporânea.
Norwegian Wood
Outro favorito dos fãs tem o título emprestado de uma canção dos Beatles, passa-se no Japão da década de 1960, quando o país acelerava sua reconstrução, e conta a trajetória do jovem Toru Watanabe. Como a maioria dos personagens masculinos do escritor, Toru tem as válvulas de escape emocionais entupidas e vive angustiado com questões filosóficas. Ele se envolve com uma estudante progressista e com uma mulher mais velha, em encontros e cenários da agitada Tóquio e de alguns dos lugares mais bucólicos da ilha, como a “floresta dos suicidas”. A geração esputinique é confrontada com o retrocesso que viria em relação aos ideais perseguidos e aos tabus quebrados durante as décadas de 1960 e 70, reagindo ora apática, ora intensamente, ao som de heróis musicais do japonês, como Miles David, Bill Evans e, claro, The Beatles.
Trilogia 1Q84
Um dos ápices de criatividade da obra de Murakami, como o título sugere, é uma homenagem à distopia de George Orwell. Aomane, a personagem principal, é uma das mais carismáticas já criadas pelo escritor. Professora de artes marciais e assassina profissional, ela vive de maneira independente, completamente fora dos padrões machistas estabelecidos pela cultura japonesa. Em um universo quase paralelo, o sensível Tengo, um professor de matemática que aspira a se tornar escritor, está ocupado em reescrever o romance Crisálida de Ar, criado por uma misteriosa garota de 17 anos. As narrativas se entrelaçam quando os personagens atravessam portais que levam a um “admirável mundo novo” fora da aldeia global japonesa.
Sono
Após 17 dias sem dormir, uma mulher, cuja vida perfeita incluía um marido e um filho “normais”, reflete sobre suas escolhas, em uma jornada de autoconhecimento que a levará a tomar decisões e continuar a viver na condição de insone. Nos anos em que dormia normalmente, a protagonista funcionava no piloto automático, como motor de uma rotina que servia de apoio ao marido bem-sucedido. Ao deixar de dormir, o mundo real, repleto de sombras, hipóteses e caminhos possíveis, se revelou. Para permanecer nele, ela nunca mais pode fechar os olhos.
O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação
O livro, que por pouco tenho autografado pelo autor, conta a história de Tsukuru Tazaki, um engenheiro que habita Tóquio, responsável pela construção e manutenção dos trens da megalópole. Como a maioria dos personagens de Murakami, Tazaki é solitário e carrega um trauma. Rejeitado pelos amigos quando morava em Nagoia, vive uma vida insossa e sem cor, como se estivesse impedido de ser feliz por não entender o motivo do abandono. Incentivado por uma amiga, ele retorna à sua cidade natal para confrontar os amigos e, enquanto mergulha em suas próprias reflexões (muitas vezes, baseadas em sonhos e realidades paralelas), começa a encontrar respostas que estavam dentro dele mesmo.
Caçando carneiros
O romance que tornou o japonês mundialmente conhecido mistura mitologia e suspense a partir da história de um publicitário sem nome, com uma vida pacata, convivendo com sua ex-mulher e alguns amigos. Inicialmente, todos aparentam ser extremamente comuns. Tudo muda após o recebimento de uma correspondência que o leva a conhecer pessoas inusitadas, incluindo uma modelo com orelhas sedutoras, um grupo de extrema direita e até um homem-carneiro. O protagonista precisa atravessar o Japão em busca de um carneiro capaz de trazer de volta a vida como conhecia. Murakami em seu melhor: situações banais e realismo fantástico mesclados em um universo repleto de descobertas pessoais.
Dance dance dance
As referências pop de Murakami aparecem com frequência em seus romances. Neste, Beach Boys e Star Wars são como personagens. O protagonista é um escritor independente que se identifica como “limpador de neve cultural”. Por necessidade ou costuma, aceita trabalhos que não gosta, incluindo reportagens bizarras, na tentativa de se manter em sociedade após alguns eventos traumáticos. Quando sai em busca de uma namorada desaparecida – outro tema recorrente no universo Murakami – decide retornar ao Hotel do Golfinho, onde a viu pela última vez. A construção está completamente diferente, como se parte de um universo paralelo. Ao se aprofundar na investigação, seus dilemas pessoais são revelados ao mesmo tempo em que adentra um mundo de outros desaparecimentos, atividades fora da lei e dubiedades.
Crônica do Pássaro de Corda
Outro dos meus preferidos tem como personagem principal Toru Okada, um jovem casado e sem filhos que vive uma existência comum em Tóquio. Seu gato desaparece e seu cotidiano se desmorona quando personagens estranhos aparecem, em uma narrativa próxima da onírica. Toru é obrigado a enfrentar traumas de toda uma vida com o aparecimento de seus próximos fantasmas pessoais, relacionados ao amor, ao convívio e sua juventude. A partir da narrativa, Murakami nos faz refletir sobre a maldade presente nos homens e o legado de violência das guerras em que o Japão se envolveu. É um dos que mais recomendo para quem quiser se iniciar na obra do japonês.
Homens sem Mulheres
Murakami é um exímio executor de contos com conexão aos seus romances. Neste livro, sete deles são reunidos, incluindo o que serviu de base para o roteiro do filme coreano “Drive my Car”, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Em todos os contos, o isolamento da vida moderna, presente no universo do autor mesmo antes da revolução tecnológica, e da solidão que permeia a vida de seus personagens, mesmo dentro das relações amorosas.
O elefante desaparece
Uma coletânea com dezessete contos que mergulham no universo fantástico do autor japonês. Em todos, o senso de normalidade é desafiado a partir de personagens como um homem que vê seu elefante preferido desaparecer; dois recém-casados passam fome a ponto de decidirem assaltar um restaurante; uma mulher descobre um jeito de se livrar de um monstro que a atormenta a partir de seus próprios pensamentos. Os contos mesclam humor com suspense, comprovando a capacidade de Murakami de transitar em diferentes realidades, em histórias que aparentemente se passam em universos paralelos, quando, na realidade, estão nas camadas de nossa existência.
Matéria publicada na edição 14 da revista UNQUIET
The Okura Tokyo
# Introduzimos ativamente equipamentos de economia de energia e implementamos medidas de economia de energia
# Utilizamos água de poço e usamos água de chuva, água de drenagem de cozinha e água de drenagem de piscina como água recuperada
# Consideramos o fluxo do vento na seleção e disposição das árvores para criar locais frescos
# Mantemos um grande parque e espaço verde correspondente a metade da área do terreno
# Preparamos 2.500㎡ no lado leste do hotel como Parque Edomizaka da cidade de Minato e entregamos à cidade de Minato
# Criamos um jardim com mais de 5.000㎡ no lado norte e liberamos ao público em geral
# Usamos canudos de papel, reduzimos o uso de plástico e incentivamos a não substituição de roupas de cama
# Ao processar resíduos de cozinha, não os carregamos nem queimamos, mas os decompomos no local com água e dióxido de carbono usando uma unidade de coleta de lixo bruto.