É sempre um desafio elaborar uma lista de recomendações literárias. É preciso pensar em como as obras podem dialogar com outros gostos, além do meu. O esforço aqui é pelo singular, pelo localizado no tempo, pela diversidade de anseios. Busco contemplar desde os que apreciam curiosidades biográficas até aqueles que amam o conhecimento da literatura como arte e seus pormenores, discussões existenciais, dramas da velhice, da distância e das separações pelas quais inevitavelmente as famílias passam e passarão.
Autores LGBT
As obras que compõem esta lista são todas muito sensíveis, guardam em comum a gentileza com uma humanidade dura, embrutecida pelo tempo, pela solidão, pela exclusão, pela carestia, pela doença etc, mas que volta a luzir quando tratada com a sensibilidade, a beleza e a afetuosidade da boa prosa.
Machado, romance de Silviano Santiago (Companhia das Letras, 2016)
É uma obra que diz respeito aos últimos quatro anos da vida de Machado de Assis. Romance sobre a velhice, não é um relato biográfico fidedigno dos últimos dias de Machado, pois a narrativa confunde os limites entre a ficção e a realidade. É romance, ficção, biografia e tem até mesmo traços biográficos do autor.
Os últimos anos de Machado de Assis foram marcados pela epilepsia e pela solidão, tendo apenas a presença constante do amigo Mário de Alencar (neto do romancista José de Alencar), as demandas médicas eram frequentes e o escritor foi tratado por importantes nomes da medicina na época, como Miguel Couto e Tomas Cochrane, o introdutor da homeopatia no Brasil.
Santiago escreve um texto sensível, que toma cuidado em não abusar da história de Machado ou de sua família (na época o autor escrevia Memorial de Aires). Ele nos revela outras dimensões de Machado de Assis. Um Machado mais íntimo, mais vivo, mais introspectivo e muitíssimo humano.
Um Exu em Nova York (Pallas Editora, 2020)
É uma coletânea da escritora Cidinha da Silva. Este é o seu primeiro livro de contos, em uma obra que já navegou por diversos gêneros: de crônicas a poesia, sendo o primeiro estilo a presença majoritária em seu trabalho. Já suas incursões na poesia podem ser lidas em Canções de Amor e Dengo.
Tomando emprestado o pensamento vivo de Leda Maria Martins, Cidinha nos convida a conhecer as “exuzilhadas”, ideia que conjuga as palavras “exu” e “encruzilhada”, isso porque os exus habitam as encruzilhadas. Exu é uma divindade iorubá, o senhor dos caminhos, das comunicações e das transformações.
Esta obra nos transporta para o interior da cultura afro-brasileira com toda a sua riqueza e potência. São “afrografias”, modos de contar que preservam a ancestralidade africana, suas palavras, temporalidades e cosmovisões. É uma obra em movimento, ambientada em muitos lugares: o terreiro, a cidade, a encruzilhada, Nova York, e que se move também entre o sagrado e o cotidiano.
Hugo de Carvalho Ramos – Obra Reunida, de Hugo de Carvalho Ramos (Editora Ercolano, 2024)
É uma preciosidade para os amantes e curiosos da literatura brasileira. O autor é um regionalista goiano, nascido no final do século XIX, cujo sucesso e reconhecimento literários estão vinculados ao seu livro de contos Tropas e Boiadas, que influenciou nomes como Guimarães Rosa. Apesar disso, a obra de Hugo é pouco conhecida.
Trata-se de uma coletânea que revela a alma de um Brasil em constante mudança. O autor possui um lirismo e uma perspicácia muito particulares, o que torna a leitura prazerosa e faz do tomo Escritos Esparsos, componente destas Obras Reunidas, um portal através do tempo e da história brasileiros. O livro ainda é composto de textos de crítica e jornalismo, pelos quais conhecemos um Hugo que escreve sobre tudo: desde temas rurais até sobre futebol, política e questões existenciais e filosóficas. Compõem também a obra Cartas do Autor, que traduzem muitos de seus demônios e angústias, devido à recusa em aceitar a própria homossexualidade.
Uma Viagem Solitária: a Trajetória Pioneira de um Transexual em Busca de Reconhecimento e Liberdade (Editora LeYa, 2019)
De João W. Nery, é a autobiografia do primeiro homem trans a se submeter à cirurgia de redesignação sexual no Brasil.
É um texto muito corajoso. Nery compartilha conosco as angústias de uma vida em busca de liberdade e os caminhos de sua vida antes da transição e da cirurgia. Ele conta relatos sensíveis das pessoas que conheceu, e com as quais travou diálogos e manteve encontros. É a história de uma vida, que aproxima o leitor das dores e delícias de sua jornada. Um livro belíssimo, emocionante e revelador do fato de que não há nada mais complexo que a dureza do existir.
Livros de autores LGBT
Quero destacar que todos os autores que recomendei são LGBT, mas escrevem sobre temas diversos. Espero que os textos sejam para você tão agradáveis e emocionantes quanto são para mim.
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Matéria publicada na edição 16 da revista UNQUIET