Quinze dias em um deserto

“Esta viagem vai mudar a sua vida”, disse o guia ao nosso grupo prestes a embarcar para Utah, nos Estados Unidos

Humberto Campana

Tive um pensamento irônico, com o ceticismo de quem não acredita em promessas e profecias. Era 1988. Eu frequentava o Esalen Institute, um centro holístico na Califórnia, e aceitei o convite de uns amigos para uma viagem de 15 dias pelo Grand Canyon. Guias especializados nos orientavam de dia, e de noite montávamos as barracas no deserto às margens do Rio Colorado. A comida, vegetariana, e os suprimentos, eram transportados em botes que nos acompanhavam. Logo de início tive um encontro peculiar com a natureza, a geologia estranha, as camadas de pedras de cores fortes, roxo, turquesa, vermelho, verde, terracota.

O clima era extremamente quente. Me deparava com cascavéis que se enrolavam em árvores e pequenos arbustos para poder suportar as temperaturas de 40 graus do solo do deserto. O único refresco era a água gelada e barrenta do rio. Intercalávamos caminhadas e rafting em botes infláveis, seguindo à risca as orientações para navegar com segurança. O rio, ora calmo, ora bravo, chegava a ter ondas de 12 metros de altura.

Aos poucos, o estranhamento deu lugar a um encantamento pela paisagem totalmente nova, aos meus olhos, do deserto americano. Numa tarde, paramos para comer e uma serpente passou tranquilamente entre as minhas pernas e seguiu seu curso. Ali, deixei de me sentir um intruso, e, sim, integrado naquele ambiente. Não usei mais a barraca, preferia dormir no colchonete a céu aberto, vendo as estrelas cadentes.

Com o passar da viagem, o tédio da rotina foi tomando conta de mim, acostumado com o ritmo frenético da cidade, ávido por novidades o tempo todo. Tínhamos mais um trecho no rio antes de chegar à Hoover Dam, perto de Las Vegas. As águas estavam calmas, e eu, despreocupado, pisando nas estrelas, deixei aberto meu colete salva-vidas ao entrar no bote.

De repente, meu bote virou. Fiquei preso em um redemoinho, que começou a me puxar para baixo com força, enquanto eu via o restante do grupo seguir viagem. Era desesperador, não tinha onde me agarrar naquele paredão de rochas. Em alguns momentos, era levado para a superfície e recuperava algo de fôlego, mas logo era sugado para o fundo. Depois de uma batalha de poucos mas longos minutos, a correnteza me jogou sobre uma pedra, e consegui alcançar a margem do rio.

Horas mais tarde, tive a necessidade de desenhar aquela experiência. Imaginei uma cadeira de ferro pesada, de chapa grossa, cortada com um maçarico em forma de espiral. Foi minha maneira de registrar esse encontro com a morte. Na época eu não era designer, fazia cursos de serralheria e joalheria, pois queria ser escultor.

Na volta a São Paulo, materializei o desenho. Usando ferro bruto e fogo construí minha primeira cadeira, a Positivo. Meu irmão, Fernando, que estava ali, resgatou o que sobrou e criou outra cadeira, a Negativo. E assim se deu a nossa primeira criação juntos, dando início à nossa história.

E, tenho que admitir, o guia estava certo. Minha vida nunca mais foi a mesma depois dessa viagem. 

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